quarta-feira, 4 de junho de 2008

10° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

“Chefar-Nahum”, “cidade de Nahum” (um profeta), hoje aparentemente pequena em relação ás nossas cidades, onde os relacionamentos humanos freqüentemente se dissolvem na amplidão das dimensões; esta cidade foi então o proscênio de um fato que marcou de modo inesquecível os habitantes da época e que, se o soubermos ler como nos foi transmitido, não deixa de impressionar qualquer pessoa em que o desejo de liberdade for maior do que o da a segurança. Sigamos a leitura do Evangelho fazendo com que o nosso ânimo se deixe conduzir pelo Espírito que moveu o próprio escritor, o objeto da história narrada hoje.
A leitura começa dando-nos indicações quanto a Jesus: «Partindo dali». Embora o protagonista da narração seja o próprio Evangelista Mateus (como entendem a maioria dos estudiosos), ele não fala de si mesmo, não narra a sua história como sendo “sua”, pois é de Jesus que procede o evento que modificou a sua vida e que escandalizou aquele povo. O Evangelista se interpreta como alguém que, simplesmente, se encontra no “caminho de Jesus”. Com profunda humildade, com aquele agradecimento de quem se sente agraciado por um benefício não merecido, Mateus narra a sua história, como a de alguém que se percebe “encontrado” por Jesus, assim como o Pastor encontra a sua ovelha perdida. Mateus não é o centro da própria história! Eis então, que desde o início o Evangelista nos recorda a correta posição diante de Jesus tão bem expressa com as palavras do Evangelista: «Não foram vocês que escolheram a mim, mas fui eu quem vos escolheu» (Jo. 15,16). Muitas vezes, quando refletimos sobre a nossa própria história, sobre a nossa vocação, quando precisamos rever as nossas posições principalmente em ocasião de decisões importantes e que nem sempre têm volta, cometemos o perigoso engano de cair na mentalidade laicista pela qual tudo depende e somente depende do indivíduo. Freqüentemente consideramos o nosso caminho de fé como o resultado de um processo no qual fomos nós que decidimos nos inserir por uma série de fatores e no qual caminhamos com uma série de objetivos... e assim esquecemos que, se estamos no caminho da fé, é porque fomos importantes por Alguém que Ele não quis fazer a menos de nós. Por pura bondade nos convidou a fazer parte da história que Deus desenha no mundo dentro da história que os homens traçam no mundo. Como é bom ser importante para alguém! Como é bom ser importante para Jesus! Tem algo que paga esta sensação?
Sabemos que a Cidade era passagem obrigatória para os viandantes que percorriam longos trajetos, pois estava situada no entroncamento das duas grandes artérias viárias (a “Via Maris” e a “Via Regum”) que, junto com a “Rota das Montanhas”, garantiam com segurança e rapidez o deslocamento de mercadorias, tropas e peregrinações anuais rumo a Jerusalém. Jesus percorria estas estradas em suas viagens e Cafarnaum era lugar obrigatório de passagem. Foi ali que o Senhor conheceu Pedro e outros dos discípulos; a Cidade lhe era familiar. Provavelmente Jesus devia conhecer Mateus bem antes do fato hoje narrado. Se assim for, será mais fácil compreender o sentido da palavra “misericórdia” que o Evangelista cita. Precisamos conhecer pelo menos alguns detalhes da vida de um “Publicano” para que possamos interpretar corretamente o sentido da narração que nos revela um mundo novo: o mundo da “misericórdia”. Era chamada “Publicanos” (homens públicos) uma categoria de pessoas que constituíam uma classe à parte, muito mal-vista, tida como uma praga. A cobrança de impostos na época -antes da reforma administrativa do Imperador Augusto- era feita por licitações: quem ganhava a licitação de arrecadação depositava imediatamente um valor estabelecido no tesouro do Rei (no caso de Mateus o Rei era Herodes Antipa) e, em seguida, podia recuperar a soma cobrando das pessoas o que achasse necessário (algo semelhante à concessão que o Estado hoje dá às Concessionárias de rodovias etc...). Naturalmente não estava claro quanto os Publicanos pudessem cobrar (pois as contas eram desconhecidas pelo povo) fato pelo qual estes empreiteiros extorquiam até 50% a mais do que o devido, inclusive porque criavam uma série de sub-empreitas, (terceirização) fragmentando de tal modo a arrecadação que o povo era explorado sem possibilidade de controle. Obviamente a exploração era tanto mais possível quanto mais houvesse conivência com as autoridades militares, que garantiam o procedimento. Do ponto de vista religioso e moral os Publicanos eram considerados mais pecadores do que os pastores e o “povo da terra”; ficando na mesma linha das prostitutas e ladrões.
Após estes esclarecimentos, voltemos à leitura.
O Evangelista descreve a si mesmo como «um homem»; tinha apenas um homem por trás de um publicano odiado, por trás de uma profissão iníqua, tinha apenas um homem preso ao seu trabalho ao seu mundo, à sua profissão: «sentado». O seu mundo poderia ter ficado para sempre um banco de impostos, uma motivada corrida atrás do lucro, uma ganância justificada... como sempre acontece quando o mundo, o nosso mundo, não é mais o lugar onde expressamos “quem” somos, mas sim o lugar onde somos aprisionados por aquilo que fazemos. Estava ali apenas um homem, precisando de algo que desconhecia, de um mundo novo, de uma fascinante aventura. Foi isto que Jesus viu quando a opinião pública, o julgamento dos bem-pensantes não via nada mais do que o mal que aquele publicano fazia. Eis então que se abre a nós uma nova maneira de ver o homem: qualquer pessoa nunca se identifica nem define pelo que ela faz; sua dignidade, apesar de qualquer situação que esteja vivendo, vale muito mais do que o erro que possa estar cometendo. O homem é mais do que o seu pecado, e isto é o que Jesus veio resgatar, valorizar, santificar.
Marcos e Lucas nos informam que o Publicano tinha por nome “Levi”; aqui, o próprio Evangelista omite esta informação: para ele a vida começou a partir do momento em que Jesus teve “misericórdia” dele. A sua vida começou dando-lhe um novo nome; por todos foi chamado “Mateus”, que significa “dom de Deus”. É isto que seria a vida do Publicano daquele momento em diante, um dom de Deus, o reconhecimento da gratuidade de Deus. Traria em si o dom de uma existência com sabor, com vida, prenhe de um sentido que ultrapassa o que um «homem» sentado no seu mundo pode imaginar. Ele carregaria em si a vida como “dom de Deus”, os outros discípulos chamariam ele “dom de Deus” em favor de muitos!
Um dom, é assim que deve ser considerado o instante em que Jesus intervêm em nossa vida abrindo aquela porta que nos permitirá de não mais ficarmos “sentados”. Um grandíssimo dom de amor que o Senhor tem a dar ao mesmo tempo para quem é convocado e para quem usufruirá as riquezas da vida de quem é convocado. Como é diferente a existência quando a interpretamos e descobrimos como um dom de Deus! Ela se transforma num constante sentimento de alegria e gratidão, que brota, espontâneo, principalmente quando sabemos que fomos chamados por pura bondade. Não podemos não recordar que a mesma atitude permeia toda a vida de Paulo, o qual se considera «indigno de ser chamado apóstolo» e que, somente «por gratuidade» ter-se tornado o que era (cfr. 1Cor. 9-10). Carregar em si próprio a ação gratuita de Deus, contemplar esta ação, confere à existência um sentido diferente, permeia os atos, as decisões, os sorrisos e as lágrimas de um sentido que supera a compreensão humana, um sabor que transparece e mina em favor das pessoas que ainda não conhecem o verdadeiro rosto de Deus.
A beleza deste instante narrado ficou gravada na tela de um grande pintor, Caravaggio, que representou o Publicano em trajes da época (1600) -para indicar que o chamado acontece sempre-, numa sala escura onde uma luz perturba a atenção de todos, que estava voltada sobre duas mãos que contam as mesmas moedas; uma luz que rompe a escuridão daquele mundo.
Como Mateus terá interpretado o gesto de Jesus? Evidentemente é muita presunção querer entrar no coração do Evangelista, contudo, creio, alguns pormenores podem nos ajudar a entender o que de Jesus Mateus percebeu. A pista nos é dada pela citação de Oséias: «Quero misericórdia e não sacrifício». Com certeza poderíamos fazer uma leitura desta citação como de um preceito que Jesus dá, não seria de modo algum errado. Todavia se nos colocarmos por outro ângulo podemos ver nisto também o sentimento que Jesus provou. A misericórdia, na linguagem bíblica, é ligada a um sentimento “visceral”, irracional, aparentemente sem lógica. Pode ser comparado ao sentimento de uma mãe que, embora tudo diga que seu filho agiu erradamente, sempre dirá “ele não é assim, foram as más companhias...”. É a lógica do amor que triunfa sobre a lógica comum. Jesus não podia “ver” um homem “sentado” no seu mundo quando, provavelmente por ter conhecido anteriormente o Publicano, via nele não o que era, mas o que seria. A lógica irracional da misericórdia não vê nada mais do que o valor da pessoa, prescindindo de tudo. Vê o que de bom Deus fez, mesmo que isto esteja sufocado, abrutado por situações externas. É a este ponto que Jesus não deixa de oferecer a oportunidade única de se aventurar na seqüela Dele sem prometer nada mais do que Ele mesmo. Um pescador poderia voltar a ser pescador, mas um Publicano não! Era questão de uma decisão. As decisões são carregadas de verdadeiro amor quando dão respostas generosas, sem excesso de avaliação: «... levantou-se e seguiu a Jesus». Jesus abriu a porta de um mundo novo.

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