quarta-feira, 22 de abril de 2009

III Domingo do Tempo Pascal (Pe Carlo)

O trecho que acabamos de ler faz séqüito à bem conhecida história dos discípulos a caminho de Emaús. Sabemos que estes haviam abandonado Jerusalém e os Doze dirigindo-se por um outro caminho, queriam percorrer a própria estrada. A decepção, o medo de ter errado tudo seguindo Jesus os impelia a encontrar outra solução, e com isto cair na tentação de resolver de outro modo o que a fé em Jesus não havia conseguido. Era tarde, quase noite quando haviam saído de Jerusalém, era noite quando voltaram de Emaús... Os fatos que hoje acabamos de ler se dão no mesmo dia, que é o dia da Ressurreição. E mais, para Lucas é neste mesmo dia que se dá a Ascensão de Jesus: é um dia que não termina. É o nosso dia, o dia que pertence à eternidade, é o “dia de Jahvé” como o chamavam os profetas. É preciso, então, que leiamos com um pouco de atenção o nosso trecho para que possamos entender melhor o sentido dos nossos dias, o sentido da missão que de Jesus os discípulos receberam.
Os dois estavam de volta em Jerusalém, não mais carregados do seu fardo de tristeza, mas sim da alegria que haviam experimentado no encontro com Jesus. Suas palavras eram palavras de confirmação e de esperança. Sim, aqueles que não acreditavam mais que fosse possível aquilo que tanto haviam sonhado, eram os mesmos que agora confirmavam aos outros. Confirmar significa “dar firmeza”. É nestas circunstâncias, isto é, enquanto confirmavam os outros partilhando a sua experiência, que «o próprio Jesus esteve com eles». Bem, aqui já temos como que uma preparação para tudo o que virá depois; Jesus antecipa o êxito que os discípulos terão em sua missão: gerar as condições para que Ele se faça presente. Obviamente fica complicado entender o que o Evangelista quer nos dizer se nos apoiarmos sobre traduções não muito fiéis como: “Jesus apareceu”. Aqui não se trata de uma aparição, a aparição é exatamente o engano do qual Jesus quer preservar os seus discípulos, por isso Ele come e se deixa tocar. A “aparição” é algo confuso, pode se tratar de um fato real, como pode perfeitamente ser um delírio da mente, uma visão. Ora, aqui estamos diante de algo bem diferente e com sentido bem diferente. Para entender a profundidade à qual nos quer conduzir o Evangelista, prefiro que nos atenhamos a quanto ele diz na língua original: «Jesus esteve presente», ou “se fez presente” (o verbo grego, istemi, indica uma presença estável, firme). Lucas não explica as modalidades, estas agora são dispensáveis uma vez que os dois, pessoalmente, já sabiam como Jesus se deixaria reconhecer. Eles haviam descoberto na Palavra e no Pão a presença do Ressuscitado. Mas agora, à primeira experiência feita na Palavra e no Pão, estava sendo acrescentada uma outra: o anúncio, que é a outra maneira com a qual Jesus se faz presente. Bem, temos aqui um belíssimo exemplo da diferença entre a “propaganda” e o anúncio de fé. Propaganda é simplesmente “tornar conhecido” um evento, um produto etc. É claro que esta não é a missão da Igreja, ela não deve fazer divulgação do evento de Jesus. A missão da Igreja é bem mais séria, bem mais complexa. Ela carrega em si um “anúncio” que nasce de um drama pessoal, como aconteceu no coração dos dois. Eram pessoas que haviam conseguido superar as naturais decepções privadas, as discussões que não constroem nada, haviam apreendido a escutar mais do que opinar, e consigo estavam trazendo uma bagagem que se resume, creio eu, numa simples atitude: esquecer o próprio mundo e se deixar envolver por Jesus. Pois bem, esta era a atitude dos dois enquanto se preocupavam com os outros “confirmando-os”; então, justamente por estar esta atitude em sintonia com a de Jesus, Ele encontrou um contexto apropriado e se fez presente. É isto que cabe à comunidade que crê: realizar as condições próprias para que Jesus possa se “fazer presente”; diria: é gerar a presença de Jesus no coração de quem está ouvindo. Como não lembrar aqui as palavras da última Ceia: «Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará, então nós viremos a ele e nele estabeleceremos a nossa morada» (Jo.14,23)? É este o caráter do anúncio, da missão. A sua força nasce do caminho de conversão pessoal daquele que anuncia; sem este caminho, os nossos lábios correm o risco de fazer só uma agradável propaganda.
Prosseguindo com a nossa leitura, encontramos no mandato de Jesus uma expressão realmente muito rica, que soa assim: «Vós sereis testemunhas de tudo isso». Temos aqui a confirmação do próprio Jesus de que a atitude dos dois discípulos é realmente aquela que permitirá que a Igreja continue eficazmente, no meio de todos os povos, apesar de todas as diferenças culturais, apesar de todas as dificuldades, o caminho percorrido por Jesus.
Precisamos de uma pequena informação para compreender melhor o sentido das palavras de Jesus e encantar-se com a riqueza do seu mandato.
O verbo “testemunhar”, que se encontra pelas primeiras vezes nos poemas de Homero (1.100 a.C. ?) e, posteriormente, entra no vocabulário dos hebreus, significa “tomar consciência de um fato que não pode ser esquecido”. Tomar consciência não é “lembrar”, é um pouco mais. Significa penetrar por dentro do ocorrido e descobrir o seu sentido. Com o tempo, passou a indicar o ato de “confirmar um evento”, não por ter simplesmente “visto”, mas sim por tê-lo entendido. Disto decorreria outro sentido: fidelidade à verdade. Sem dúvida se tornará mais esclarecedor para nós saber que tudo isto se encontra sintetizado na palavra grega: “martírio” (marturion) da qual deriva “testemunho”. Testemunho é “martírio”; não é fazer publicidade nem afirmar alguma coisa sem base e envolvimento pessoal. Sabemos que a Igreja se fundou sobre o martírio, sobre os mártires. Nas pessoas que deram e irão dar a própria vida para o Evangelho encontraremos sempre o “adubo” da Igreja, a sua força vital que não “nasce de carne”, mas do amor sem condições em detrimento, até, daquilo que temos de mais precioso. Martírio é testemunho, é uma atitude amadurecida ao longo de uma vida vivida em comunhão com Deus; é o resultado de um amor maduro, não instintivo nem sentimental. Um amor que conduz a dizer, sem palavras, até onde chega o amor à verdade.
Em ambiente judaico, nos dias de Jesus, havia ainda um outro significado, que vinha do Antigo Testamento: a palavra “testemunho” indicava às tábuas da Lei (Ex.29,4; etc.), isto é, um símbolo “firme como a pedra” que simbolizava a fidelidade de Deus e a resposta do homem que deseja seguir o caminho proposto. Aos poucos o mesmo termo foi sendo usado para indicar a Arca da Aliança (Ex. 40,2-3; Lv. 16,2), isto é o “lugar” onde estava depositado o pacto de fidelidade entre Deus e os homens. Com a destruição da Arca, o Templo acabou recebendo este sentido, assim, na época de Jesus falar de “testemunho” deixava a entender três coisas: a força do anúncio com o envolvimento pessoal, a fidelidade de Deus à sua Aliança, o lugar de encontro com a presença de Deus.
Vejamos agora de aplicar tudo isto ao recado de Jesus, que soa contemporaneamente como um pedido e uma afirmação: é como se o Senhor dissesse: “sejam testemunhas” e: “vocês vão se tornar testemunhas”! A primeira indica o caminho que a Igreja deve percorrer como sua missão, a segunda indica o resultado ao qual conduzirá a dinâmica do anúncio. Assim sendo, nas palavras de Jesus encontramos um dúplice sentido: por um lado a comunidade dos discípulos é, analogamente às antigas tábuas da Lei, o sinal de que Deus é fiel; de que Ele continua agindo, de que não deixou a humanidade à mercê do aparente triunfo do mal. Por outro lado a comunidade é o lugar onde está presente a verdadeira Lei, Jesus; um lugar não mais restrito a um templo num determinado território, mas sim em todo lugar onde houver um discípulo anunciando o Senhor Ressuscitado. Nas palavras de Jesus: «…serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém» é difícil não ver a alusão a que estava se realizando, com o anúncio dos discípulos, o desejo que Isaías expressara num momento de grande dificuldade de Israel: «…de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor» (Is. 2,3).

Nenhum comentário: