quarta-feira, 29 de abril de 2009

IV Domingo do Tempo Pascal

Entre as imagens preferidas do Oriente Médio com certeza se sobressai a do pastor. É uma figura querida, amada. É o símbolo da fidelidade a o que é pouco; um “pequeno rebanho” é suficiente para ter um pastor e a ele pouco importa o número de ovelhas: ele é pastor de uma como de cem ovelhas, pois estas só precisam de um único ponto de referência. Dois pastores, num rebanho, são obsoletos, pois a inteira grei se move sempre olhando para um só ponto de referência, no caso, o pastor. Entende-se então o respeito que se tinha pela imagem do pastor em seu sentido originário, o mais singelo. Contudo, à medida que o sistema social e econômico de Israel ia mudando e a dimensão do lucro ia sufocando a economia doméstica que tanto valorizava o pastor, a sua figura ficou desbotada, empobrecida. Desvaneceu a poesia e os valores ligados a esta imagem e o pastor acabou se transformando em simples empregado, que não tinha interesse nem ligação alguma com o seu rebanho. Na época de Jesus os pastores eram contados entre os pecadores; eram considerados suspeitos, pois fraudavam quanto ao leite, à pele e ao peso da lã que deviam ao patrão do rebanho. Além disso, eram muito pouco religiosos e acusados de imoralidade. Mas não era assim no início; entre as figuras de linguagem mais expressivas para indicar o quanto Deus ama o seu povo, a mais antiga a encontramos no livro de Gênese. Jacó, antes de morrer deixa uma benção para cada um dos patriarcas das tribos de Israel; a José garante a benção que virá «pelo Pastor, pela Pedra de Israel, o qual te ajudará; pelo Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus» (Gen. 49,24-25). Deus é “rocha” e “pastor”; isto é, firmeza e fiel cuidado. Israel é o rebanho, o qual não sobrevive sem o seu pastor.
Por outro lado, lemos a veemência com a qual o profeta Ezequiel investe contra os falsos pastores, isto é contra aqueles que aproveitam da fragilidade natural da ovelha para própria vantagem. Não creio que seja inoportuno ler uma parte do trecho com o qual o Profeta expressa toda a decepção e a mágoa de Deus, o qual vê a sórdida malícia daqueles que se aproveitam dos mais frágeis: «Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não deveriam os pastores apascentar as ovelhas? Vós vos nutris de leite, matais as goradas, vos revestis de sua lã; mas não apascentais as ovelhas. A fraca não fortalecestes, a doente não curastes, … mas dominais sobre elas com rigor e dureza. Assim, se espalharam, por não haver pastor e se tornaram pasto para todas as feras do campo» (Ez. 34,2-4). Na ocasião deste oráculo, Ezequiel não deixa a decepção triunfar e, em nome de Deus assim continua: «Eu mesmo tomarei conta das minhas ovelhas… suscitarei um pastor que as apascentará». Ora, nos surpreende a coincidência: Jahvé diz que ele mesmo cuidará do seu rebanho, por outro lado diz que ele suscitará um pastor; o “Pastor” e Jahvé parecem coincidir. Pois bem, sendo assim, podemos perceber imediatamente o impacto das palavras de Jesus quando, então, se define “o Pastor”. Estamos diante de um dos mais antigos e profundos momentos da auto-revelação de Jesus: Ele se declara “Deus-enquanto-apascenta”.
Como os fariseus não considerariam isto uma blasfêmia? E temos mais.
Para compreender melhor o peso da afirmação de Jesus e não parar num moralismo simplório sobre o comportamento (pois não é somente disso que Jesus fala, não é este o núcleo do trecho), creio que possamos aproveitar de um outro conceito que o mundo da época associava ao pastor.
Em escritos e baixo-relevos dos Assírios e na Babilônia, a figura do Pastor é associada àquela do Rei Justo, do rei que, por sua justiça, irá instaurar um reino que durará, destinado a não cair como todos os outros reinos injustos. O Pastor é então rei de um reino que não tem ocaso. É portador de uma nova lógica, de um novo critério de vida, carrega em si a possibilidade de que as esperanças dos mais frágeis sejam realizadas. É um rei de esperança na certeza do êxito. Pois bem, ao declarar-se “o Pastor”, Jesus está indicando que Ele é o portador desta esperança que os frágeis carregam dentro de si como um sonho, mas que Nele é realização certa porque Ele é Deus-Pastor, que dá a sua vida. Esta lógica de amor sem fim é a realidade que permanecerá para sempre. Abrindo por primeiro e indicando até aonde é preciso amar –até os inimigos- Jesus deixa entrever a diferença entre o que instaura reinos passageiros e o que estabelece o reino de Deus, o único reino que permanecerá para sempre. Um reino onde a ovelha mais fraca tem o seu lugar, onde alguém se importa com ela, onde à lógica da exploração se pode responder com a lógica do cuidado amoroso. O amor é doação: «o bom pastor dá a sua vida». Isto é o que distingue e fundamenta o reinado de Jesus. É a força atraente do amor que sabe dar.
Permito-me apontar mais um aspecto que nos é sugerido por este trecho tão rico.
Porque Jesus se define “bom”?
Certamente precisamos levar em consideração a diferença que o Senhor aponta entre o mercenário e o pastor; mas creio que seja coisa bem escassa se esgotarmos o seu significado nesta questão ética e moral tão obvia. Bem, podemos recorrer aos costumes dos antigos pastores nômades de Israel, quem sabe, poderemos encontrar alguma inspiração para entender a expressão de Jesus.
Hoje, a nossa maneira de criar ovelhas é “industrializada”, o rebanho é “confinado” para dar mais lucro. Para isso temos à disposição uma área plantada com forragens: um campo do qual as ovelhas não saem. O tempo, o adubo e a chuva fazem crescer o pasto. Mas não era assim no ambiente de Jesus nem dos seus antepassados. Imaginemos um grupo de pessoas de então, um clã que vive do seu rebanho e com o seu rebanho, dia após dia. A vida dos dois corre ao uníssono. Mas ali, diferentemente das nossas regiões, não chove com tanta freqüência; o pastor não pode ficar “esperando a chuva”, agir assim significa morte certa para todo o clã e para o rebanho. O pastor, o bom pastor, deve saber reconhecer quando e onde choverá, deve saber reconhecer com antecedência suficiente para desmontar o acampamento, organizar o clã e o rebanho para empreender a nova viagem rumo à chuva, à vida. O bom pastor sabe quando e onde. Sente.
Ele “sabe” e por isso pode conduzir rumo a uma meta de vida. É assim que Jesus se interpreta e se oferece aos homens que decidem confiar nele. Levantar todo um acampamento era um risco, significava abandonar uma área com um mínimo de garantia para se arriscar empreendendo mais um outro caminho. Quem faria isso? No entanto o bom pastor sabia que aquela aparente segurança aos poucos se transformaria em morte! Era preciso abandona-la antes mesmo que esgotasse todos os seus recursos.
Assim age Jesus conosco quando nos pede de deixar aquilo que para nós é já algo satisfatório, que nos basta, que parece “estar bem assim”; Jesus sabe que isto esgota e se transforma em morte do nosso espírito, o qual é incansavelmente atraído para o infinito, que é Deus, mesmo que nós não o percebamos, mesmo que nós não o reconheçamos, mesmo que nós nos perguntemos o porquê ter que deixar algo que é garantido por algo que não conhecemos, que não controlamos...
Jesus é o bom pastor que não deseja a derrota de suas ovelhas, não deseja que fiquem sem a água da vida simplesmente porque ninguém as empurrou rumo a novos pastos.
Não cério que possamos encontrar na Escritura uma descrição mais significativa deste belíssimo diálogo entre o pastor e a ovelha como no Sal. 23 «O Senhor é o meu pastor: mesmo que eu passe por um vale árido, sombrio, porque temerei? O Senhor está comigo!». O que mais eu preciso? Se Ele me ama a ponto da dar a sua vida, porque temer quando não vejo...?
Que a imagem do bom pastor reforce em cada um de nós a coragem de aderir, sem colocar condições, certos de que o bom pastor sabe “onde” e “quando”…

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