quinta-feira, 7 de maio de 2009

V Domingo do Tempo Pascal (Pe Carlo)

As imagens da videira e dos ramos, do agricultor e seu trabalho, das uvas e sua abundância, ressoam nos lábios de Jesus, como emblema de um dos últimos ensinamentos, entregue aos discípulos durante a última ceia. Este é um elemento que não podemos descuidar; o contexto da Última Ceia nos permitirá entender o sentido profundo das palavras de Jesus.
Vejamos antes os pressupostos culturais.
Nos usos do médio-oriente, inclusive entre aos hebreus, a última refeição representava o momento mais importante da relação entre um pai e seus filhos, entre a família que o pai estava prestes a deixar e a descendência que viria para dar continuidade à família. Um exemplo evidente se encontra em Gen. 27: Isaac sabe que estão findando seus dias e que precisa deixar sua herança aos filhos. Para que isto tenha efeito público e legal o faz através de uma refeição e pede, para tanto, que Esaú vá ao campo caçar alguma presa. O ato de partilhar o alimento, o último alimento, trazia um duplo sentido. O primeiro era de caráter definitório, no sentido de que estabelecia definitivamente o estado de fato do ponto da morte; indicava, por exemplo, que aquela situação -bens, relações...- devia ser mantida porque correspondia à vontade do pai. Por segundo, a última refeição tinha também uma perspectiva perpetuante, isto é: projetava a situação fixada para um futuro, com o intento de ligar o passado com o advir. Este ato era simbolicamente representado pela comida “do pai” (leia-se: “tudo o que deu sustento ao dia-dia do pai”) que se faz presente, passa, na vida e no sangue do filho. Esta ligação entre presente, passado e futuro era essencial para os antigos e, logo, para entender o gesto de Jesus.
Como Isaac, Jesus também sabia que seus dias estavam contados e precisava deixar aos seus a sua herança, que ligaria o passado com o futuro dos discípulos. Assim como para um ancião oriental entregar aos filhos a sua herança significava entregar-lhes sua vida, Jesus se colocava diante dos seus e lhes entregava o que era mais valioso pala Ele, o que havia dado sentido à sua existência. Saibamos então receber como um dom precioso o que Jesus quer dizer-nos hoje, com os sentimentos de quem está ouvindo aquele último, acalorado apelo de Jesus que visa a vida e a felicidade do homem. A imagem da videira foi então usada por Jesus a fim de definir e perpetuar sua herança nos discípulos. Porque esta imagem? Qual o conteúdo que trazia consigo?
O Antigo Testamento usava a imagem da videira para indicar o povo de Israel: «Trouxeste uma videira do Egito» (Sal. 80,8) e para simbolizar a atenta relação de Deus com o seu povo. Profetas como Isaías (5,7s), Ezequiel (15,1s), Oséias (10,1s) haviam usado a figura da videira e da vinha para indicar Israel e o trabalho paciente e cuidadoso de Deus para com seu povo. A videira e a vinha eram a imagem das esperanças de Deus, o qual “plantou” um projeto de salvação, de felicidade, no “deserto” da vida dos homens. Eram imagem de um Deus que cuidou deste projeto com carinho, regou, cercou a sua vinha a fim de que pudesse ser oferecido a todos o seu fruto: a alegria de viver, o «vinho que alegra o coração» (Sal. 104,12). Contudo as opções que Israel fez em sua história não facilitaram o projeto de Deus; a presunção, o poder, as estruturas antepostas ao valor do homem, o moralismo dos bem-pensantes haviam ofuscado o que deveria transparecer, ou seja, a felicidade de estar com Deus e a alegria que possui aquele que confia na Sua palavra. Diante disto, Jesus se apresenta então como a videira: a videira “verdadeira”, como o Pai a deseja. A videira autêntica plantada por Deus na existência dos homens.
«Eu sou a videira» -disse- que com certeza dará o fruto: a alegria e a fraternidade que o vinho simboliza, o aspecto agradável da vida que tanto nos falta ainda hoje. Cabe, contudo recordar um aspecto muito importante, o aspecto “sacrifical” da vida de Jesus, tão fortemente expresso na última ceia. A imagem do vinho dado a beber é fascinante para um hebreu que chamava o vinho: «sangue da videira» (cfr. Gen. 49,11).
Creio que seja obsoleto qualquer comentário que pretenda explicar o sentimento de Jesus quando se identifica com a videira!
Na Mesopotâmia a videira era chamada “Erva da vida”. A árvore cósmica da qual provém a vida é representada em baixo-relevos da época como uma videira. Ainda hoje, nos mercados das ruelas orientais são vendidas folhas de videira para preparar alimentos; este uso não é somente um gosto culinário, mas nasce de um sentido religioso. Sendo assim, entende-se melhor a motivação pela qual Jesus acrescentou que Ele é a videira «verdadeira», aquela que tem condições “verdadeiras”, reais, de proporcionar a vida assim como o homem a desejou desde sempre. É, logo, uma oferta de vida que nasce da entrega de Sua própria vida, como uma herança “verdadeira”. Não podemos esquecer que o contexto da última ceia é também um contexto de Eucaristia, de alimento que dá a vida.
Ora, o fruto, que Jesus garante a todos os homens, tem o Senhor como origem, com certeza, mas não alcança a humanidade inteira prescindindo dos sarmentos. Não se dá uma videira sem os seus ramos, pois nenhum cacho de uva nasce diretamente do tronco. Destarte, como o Pai não quis intervir no mundo prescindindo da participação do homem, como não quis entrar diretamente na história humana sem o consentimento generoso de uma Mulher que se oferecia em nome de todos os homens, analogamente Jesus não quis mudar o estilo da história da salvação. Estamos aqui no auge da narração simbólica de Jesus: para que o fruto que Ele pode oferecer alcance cada homem, o Senhor não quer prescindir dos seus discípulos. A estes, caberá a grande responsabilidade de transformar em fruto a força da vida e a alegria que Jesus tem para oferecer. A eles caberá a incumbência de visibilizar e tornar acessível a todos os que o quiserem, o vinho que tem o gosto da fraternidade. O discípulo, assim como o sarmento, é a extensão da vida que está em Jesus, é o lugar onde todos podem encontrar a alegria que a alma esmorecida deseja.
Em que consiste, então a “vida” que está em Jesus e que Ele quis deixar como herança, para que fosse perpetuada?
A “vida” que deu sentido à existência de Jesus se encontra na força de acreditar que o amor do Pai triunfará sobre as angustias, as injustiças, a reclusão na qual precipita o coração do homem que não encontra o sentido do existir. É a força de confiar não obstante tudo, a força de amar não obstante tudo, a força de ver a beleza profunda que está no homem não obstante tudo... É a força de dar a própria vida para isso, «Pois quem der a vida por minha causa, esse a guardará» (Lc. 9,24). É esta, a vida que, em Jesus, já superou a morte e também em nós a vencerá, porque o Pai não decepciona, nunca. O discípulo traz consigo esta mesma Vida porque, ouvindo a Palavra, acreditando como Jesus acreditou, seu coração se configura progressivamente ao coração Dele; seus atos manifestam o agir de Jesus, seu semblante demonstra a felicidade existencial, mesmo no sofrimento. «Não sou mais eu quem vive, mas Cristo vive em mim» escrevia Paulo aos Gálatas (2,20). Como ele, o discípulo é portador de algo que se pode perceber, mas não definir, porque o transcende: é portador do fruto da presença de Cristo que age Nele assim como a videira age nos sarmentos.
A figura indica que há uma relação entre a videira os ramos; diz-nos também que corre uma seiva entre estes. Provavelmente na época de Jesus não se sabia o porquê nem como a seiva chega aos ramos; hoje sabemos que é por capilaridade e isto também é significativo: se a seiva chega é somente porque os canais são sutis como “cabelos”, se fossem maiores não conseguiria. Bem no fundo é com estas características que se reconhece a presença de Cristo que age nos discípulos, sutilmente, imperceptivelmente. Esta dinâmica nos ajuda a compreender também a insistência de Jesus o qual recomenda, usando sete vezes a mesma expressão, que o discípulo “permaneça”, que fique, que acredite que o resultado virá, mesmo se de imediato isto não pareça. As coisas de Deus não acontecem de repente, por canais largos demais, mas sutis, diminutos, discretos. De fato as coisas de Deus não acontecem de repente, por canais largos demais, mas sutis, diminutos, discretos. Se o discípulo não permanecer, se quiser ver imediatamente o resultado, se desistir procurando outro caminho que aparenta dar resultado mais imediato, então será somente um pâmpano, um ramo sem frutos, só cheio de folhas. Um bom agricultor sabe muito bem reconhecer um sarmento de um pâmpano; é um fato esquisito, mas o segundo geralmente se apresenta com mais vigor, é mais verde, todavia é estéril. Mesmo que as aparências digam o contrário para um ignorante, o agricultor experto sabe que a aparência não corresponde à substância do ramo e por isto precisa que seja retirado. Deste modo, em relação ao pâmpano, Jesus retoma a pergunta retórica de Ezequiel: «Toma-se dele (do pâmpano) madeira para fazer alguma obra? Ou toma-se dele alguma estaca, para que se lhe pendure algum objeto? Eis que é lançado no fogo, para ser consumido» (Ez. 15,3-4). Este pâmpano somente engana o ingênuo; não consegue dar resposta suficiente à alma do homem que procura a felicidade, o “vinho” de que ele precisa para viver.
Para que possamos entregar às pessoas os frutos da videira, os autênticos frutos que podem saciar a sede de felicidade, permitamos ao agricultor que pode, que retire, que corte em nós o que engana e não produz; não resistamos à sua mão amorosa e sábia. Este é amor-sacrifício, análogo ao sangue de Jesus que nos disse naquela ocasião: «fazei isto…».

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