sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Epifania do Senhor (Pe. Carlo)

Ressoam ainda aos nossos ouvidos as palavras dos anjos que introduziam o Senhor naquele que havia imaginado como o “seu jardim”, o mundo: «eis que vos trago uma boa-nova de grande alegria, que será para todo o povo, hoje nasceu o Salvador» (Lc 2,10-11).
È uma boa nova de grande alegria porque, definitivamente, Deus uniu-se de modo essencial à sua criatura amada, não mais somente por atos ou palavras, mas com o seu próprio ser. Uma união indissolúvel, quase que um matrimônio onde a humanidade, em Maria oferece a Deus o que é, enquanto Deus oferece uma união não menos essencial; oferece o seu ser para que todos e cada um dos homens possam trilhar definitivamente o caminho que os levará à felicidade infinita.
È uma boa nova de grande alegria justamente porque é “para todo povo”, para todos e cada um dos homens. Não existe restrição alguma. Os Evangelistas em seus escritos mostrarão como uma tal alegria se encarna historicamente na vida das pessoas mais diferentes: ricos e pobres, religiosos e pessoas afastadas, homens piedosos e pecadores, judeus e estrangeiros. Jesus veio para todos, sua oferta é universal, como bem o entenderam os Apóstolos ao continuar a missão de Jesus. Eles chamaram “católica” a comunidade onde, na história dos homens, Jesus quis estabelecer a sua presença real após a Ressurreição a fim de que a mesma “boa nova” alcançasse todos os homens em todos os tempos. Este título, “católica”, tem um dúplice significado: contemporaneamente indica a “universalidade” à qual é destinada a boa nova da Encarnação de Deus e, por outro lado, indica a missão de “reunir na unidade” (é esta a etimologia da palavra grega) quantos fizeram a experiência da presença do Senhor no meio dos homens.
A festa que hoje celebramos é como que uma antecipação, um prelúdio do desejo de Deus e dos anjos: “para todo o povo”. A festa da Epifania e as leituras de hoje, nos explicitam também algumas dinâmicas através das quais é possível que se realize o desejo de Deus; isto porque cabe ao homem transferir em sua história, como pleno e verdadeiro autor, a nova realidade que Deus-feito-homem nos trouxe. É o mistério do qual nos fala São Paulo aos Efésios: «todos...são chamados por Jesus Cristo a participar da mesma herança, a formar um só corpo e participar das promessas do Evangelho».
Epifania é “manifestação” de Deus aos homens enquanto, ao mesmo tempo, manifesta o movimento do homem que, atraído por algo que apela a seu coração, se põe a caminho (ou deixa de fazê-lo). Mas é também a celebração do ato com o qual o homem se “deixa conhecer”, se manifesta sem medo a Deus. É a recuperação do primeiro ato que caracterizou o pecado: Adão se escondeu de Deus. Epifania é, logo, festa de encontro e de cura das feridas decorrentes de um relacionamento incorreto entre Deus e o homem.
Se o evento da Encarnação realiza o encontro em nível essencial, isto é, na raiz daquilo que somos, a Epifania celebra este encontro a nível existencial, isto é, nas decisões que o homem, livremente e integralmente toma -em sua “existência”- em favor ou contra a nova realidade que Deus ofereceu a parir do Natal.
Manifestação, então não somente de Deus aos homens e dos homens a Deus, mas também manifestação daquilo que somos, de como reagimos diante de Deus quando entra na nossa história não como uma idéia, “energia” ou “sentimento” mas enquanto pessoa viva e histórica.
Celebramos a verdade sobre a nossa reação ao evento da presença de Deus na nossa vida, reação esta que pode ser de abertura ou medo. O Evangelista contrapõe a figura de Herodes à dos Reis (da grande tribo de Magi, na Pérsia): um de perto, outros de longe, ambos são envolvidos no evento da Encarnação de Deus. Cada um tem à disposição alguns instrumentos que se originam da própria cultura, história, da maneira de ver o mundo e de se interpretar dentro do mesmo mundo.
Herodes pode contar com a longa história de Israel, povo realmente privilegiado e preparado por centenas de anos através de um paciente e cuidadoso trabalho de Deus. Tem à disposição a Escritura e seus cotados interpretes, tem um culto, uma afinidade cultural com aquele Deus que escolheu, na sua liberdade se tornar homem justamente no âmbito da cultura judaica. Mas, n’ele, ainda insistia o grave problema que fecha qualquer diálogo com Deus, o mesmo que a Escritura identificava com o “pecado de Adão” (ou seja, que está em cada homem): ver a Deus como um concorrente, alguém que disputa comigo, que limita o que eu sou. Infelizmente Herodes, quase a indicar uma certa categoria de pessoas, deu espaço e seqüência a tal sentimento. O resultado bem o sabemos: morte, lágrimas, solidão, medo. Um homem desesperadamente amarrado na tentativa de preservar o que inevitavelmente deverá deixar. Contrariamente aos Reis, suas perguntas indagatórias não eram para servir, mas para não perder o poder: se servir.
Os reis, homens de ciência e cultura –provavelmente discípulos do famoso Zoroastro, astrônomo e cientista- tentavam indagar através das estrelas o “sentido”, isto é, a “lógica” do mundo, lógica que era misteriosa para qualquer homem da antiguidade. Indagar não para se apoderar ou controlar (como na maioria dos casos fazemos hoje com os conhecimentos científicos), mas para se adequar àquela Lei maior do que eles. Sem o conhecimento do “sentido” das coisas, não poderiam se perceber como pessoas harmonizadas com o meio, com o universo e sua história.
Sabemos que o maior drama do homem antigo era o fato de se perceber abstrato, isolado, em discrepância com o seu povo e com o cosmo. Ora, sabemos que os reis eram personalidades corporativas, isto é, resumiam em si o inteiro povo, deste modo, encontrar aquilo que uma “lei” maior indicava, era uma questão que superava seu interesse privado: Eles não foram para si mesmos,mas para os seus povos (como nos sugerem os dons que trouxeram). Indagar, logo, para se adequar, para obedecer. A verdadeira atitude do encontro dominava seu coração, foi por isto que decidiram agir conforme o que sentiam e com aquilo que tinham à disposição. Haviam encontrado, naquele dia, o “sentido” das coisas para si e para seu povo: Deus-feito-homem.
O Evangelho nos descreve a grande alegria que os envolveu ao ver diante de seus olhos o objeto de tantas expectativas almejadas. Aquela alegria que os anjos prenunciavam para “todo o povo” de Israel, na verdade estava se realizando também para eles e seus povos, estrangeiros, de regiões longínquas. Ali em Belém, como num prelúdio da inteira história humana, se antecipava a grande alegria que pode alcançar todo homem, independentemente das raças, culturas, condições, quando este se abre ao encontro; quando humildemente busca de Deus e o acolhe do modo como Ele se deixa encontrar.
Até que usarmos a religiosidade identificando-a com a cultura e só com a nossa cultura, qualquer esta for, somente haverá divisões e a alegria não poderá alcançar “todos os povos”. O superamento destas posições pode-se dar unicamente quando, na humildade, soubermos reconhecer Deus como ele é: uma pessoa que ama o homem em sua história pessoal e coletiva.
Eis então que o Evangelho nos apresenta um ulterior passo que faz parte do “encontro” com Deus: a necessidade intrínseca de responder, não por obrigação mas como movimento espontâneo da alma. Foi assim que a alegria dos Reis se transformava em resposta, reciprocidade de dom: ouro, a cor que só se encontra na natureza no metal dos deuses; o incenso, o perfume que enche os ambientes sagrados e se eleva aos deuses como oração, culto, respeito dos homens; e a mirra, perfume usado para a confecção do óleo que servia para consagrar (como nos atesta também a prática descrita em Ex 30,22ss). Eis, então simbolizados todos os elementos que compõem o verdadeiro encontro com Deus. O três dons são expressão da tríplice resposta que o homem pode dar: reconhecimento, oração, consagração.

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