quinta-feira, 19 de junho de 2008

12° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

A passagem de hoje se coloca dentro de um conjunto de indicações para os discípulos; é como um “compêndio” que o discípulo deve sempre ter presente em sua vida. A perspectiva de Mateus dá relevo ao anúncio como sendo a missão principal dos discípulos. É um anúncio que visa primeiramente reunir as «ovelhas perdidas», como estava na intenção de Jesus, para depois se expandir ao mundo dos gentios (“gens” na língua latina significa “os outros povos”). Contudo, se o anúncio da presença do Reino, tão esperado pelos judeus, estava sendo tão hostilizado pelos próprios detentores da doutrina religiosa e do culto de Israel, o que mais podia se esperar do mundo dos pagãos? Quando o Evangelista escreve, a comunidade cristã já contava com um bom número de pessoas que do paganismo haviam aderido à fé; mas, junto com esta maravilhosa abertura, também vinham as grandes diferenças com aquele mundo. A fé cristã propunha um conjunto de valores conseqüentes à vida e ao ensinamento de Jesus que não cabiam na estrutura do pensamento antigo. Bem diferente era a visão que a fé cristã propunha quanto ao homem, às suas relações, à sua dignidade, à igualdade entre homens e mulheres, escravos e livres perante de Deus... Foi a fé cristã que trouxe ao mundo os valores que, ainda hoje, estão na base da Declaração dos Direitos Humanos proclamada em 1948 logo depois dos horrores da 2ª guerra, que mostrou ao mundo inteiro, nos campos de extermínio e nas ogivas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, do que o homem é capaz quando a sua mente é “pagã” (o termo tem origem na Grécia e indicava as pessoas entrincheiradas em suas posições, não abertas a visões novas). A reação dos “pagãos” de então foi muito violenta contra os cristãos -mesmo que de modo sorrateiro- bem antes das famosas perseguições de Nero, Décio, Diocleciano etc.
A redação final deste Evangelho é comumente atribuída em torno do ano 70, isto é, logo após a perseguição de Nero do ano 64 na qual perderam a vida Pedro e Paulo. É neste contexto então que podemos começar a ler este trecho do Evangelho. É um anúncio de esperança quando tudo parece sem sentido, quando o poder esmagador dos fortes parece tornar inútil qualquer proposta sensata que se possa fazer em favor da vida e da dignidade humana. Quando “ser cristão” corresponde a uma opção que pode custar mais caro do que se imagina.
Não será ainda hoje este trecho um consolo e como um forte abraço de Deus àqueles que ainda sofrem por causa da fé? É preciso ser realista, não podemos esconder o sangue dos mártires, pois é sobre este que se alimenta a Igreja, sobre o amor incondicional capaz de renunciar à vida, na fidelidade ao amor de Jesus. Falar das perseguições como algo “do passado” é uma grande mentira do mundo pagão. Segundo a organização dos direitos humanos “Realase International”, em 2007 cerca de 250 milhões de cristãos foram perseguidos em Países como a Nigéria, Somália, Arábia, Indonésia... Foram banidos de seus Países, terras, povos, perderam o trabalho por causa da fé, sem direito de culto ou palavra ou defesa em tribunal, impossibilitados a vender seus produtos ou cortados fora das vias de acesso às suas cidades condenados a morrer de fome... Dados mais assustadores comprovam que desde o início de 1900 foram mortos por causa da fé quase 200.000.000 de cristãos nas perseguições de Mao Tse-tung, de Stalin, na Camboja, México, Espanha, África... Não será ainda este Evangelho importante para quem sofre assim? Terão sentido as palavras: «Não os temais»?
Talvez estejamos diante de um dos mistérios de Deus menos compreensíveis e menos aceitáveis para a lógica humana. Com certeza Jesus não quer dar resposta alguma ao drama gerado pela opressão dos mais fortes, drama tão bem expresso pelas palavras de Jeremias:«Tu és justo demais, ó Senhor para que eu possa discutir contigo; contudo, gostaria de perguntar sobre a justiça: “Por que prospera o caminho dos perversos, e vivem bem todos os que procedem perfidamente?”» (Jer. 12,1). A revolta descrita no Profeta Malaquias poderia ser a nossa: «Vós dizeis: “Inútil é servir a Deus; que nos aproveitou termos cuidado em guardar os seus preceitos?» (Mal. 3,14). O que Jesus dar não é uma resposta, pois uma resposta nem sempre muda as situações, suas palavras simplesmente colocam o homem de fé num outro plano.
Antes de tudo é necessário ter esta certeza: mesmo que as situações absurdas conduzam à maior contradição com a dignidade do ser humano, mesmo que a situação afunde nas maiores trevas...Ele fala e continua falando. Não há lugar aonde não possa ser percebida a voz e a presença de Deus, pois é justamente nesta condição que Ele se fez conhecer por aquilo que é. Um Deus do triunfo é obvio demais para ser amado e percebido como amigo que “sabe o que significa…”. Um Deus que partilha os dramas do homem que não está do lado vencedor é sem dúvida menos fácil de compreender.
«O que vos digo na escuridão dizei-o à luz do dia». Ouvimos de Mateus que o Senhor ainda é capaz de dizer-nos uma palavra no meio das trevas que engrossam à medida em que Deus desaparece da vida das pessoas. Eis então que a segunda parte deste versículo indica aos discípulos como agir “nas trevas”. Em primeiro lugar Jesus censura a atitude de quem age por medo: em situações onde o medo abunda, onde parece dominar tudo, até o nosso mundo interior, ainda ali se faz presente a mão forte e protetora de Deus, por quanto absurdo possa parecer. Quando deixamos o medo dominar, renunciamos à liberdade de escolher, de escolher “como” viver uma situação desastrosa. É este “como” que faz a diferença, pois de qualquer maneira, alguns têm o poder de «matar o corpo», mas o medo pode até matar o espírito e conduzir o homem ao inferno (o que, na linguagem bíblica significa algo que é abaixo da dignidade e da vocação humana). Em qualquer lugar, se ouvirmos, será possível encontrar e se agarrar na mão de Jesus para viver o paradoxo com aquela liberdade da qual o homem é capaz ao lado de Jesus.
A segunda indicação que Jesus dá é «proclamar à luz do dia» o que Deus diz nas trevas. Quantas santas pessoas souberam, em situações de trevas, sair do próprio mundo, violentado e ferido, esquecer das próprias justas lágrimas para se projetar em direção de outros que sofrem tanto quanto! Esta é a luz, é a maneira da Luz, Jesus, de viver o drama da cruz. Proclamar à luz do dia não significa fingir que o drama não existe, mas ilumina-lo com a atitude que Jesus teve, par que a mesma “luz” possa atingir as pessoas que estão sufocando nas trevas.
Tempo atrás, em Jerusalém, fui visitar uma grandiosa obra que impressionava pela cruel realidade que representava: num túnel escuro, onde os espelhos contrapostos faziam perder a dimensão do espaço; ali, um atrás te outro, eram pronunciados os nomes, a idade e o lugar onde morreram as vitimas do nazismo. Sem dúvida uma belíssima representação das trevas... mas não havia uma palavra de perdão! Uma palavra de esperança que iluminasse. Saí com um profundo vazio e uma pergunta: “É isto o que Jesus faria?”.
O texto que estamos lendo nos remete também à maneira com a qual o Senhor fala e nos introduz para o núcleo do mistério. A frase: «o que escutais ao pé do ouvido», faz referência a um trecho de Isaías; trata-se de um poema no qual, tipologicamente, é descrito o projeto e o caminho com o qual Deus escolheu conduzir o homem em direção de algo diante do qual «até os reis ficarão calados» (Is. 52,15). Segundo este poema, a realização do projeto de salvação passa pela adesão incondicional do “Servo de Jhavé” a Deus, o qual «a cada manhã sussurra ao seu ouvido» (Is. 50,4). A expressão indica a total sintonia entre aquele que fala “cada dia” –e não tudo de uma vez, como todos nós gostaríamos- e quem está simplesmente disposto a escutar. Deus fala quase suspirando ao ouvido de modo que a Sua presença possa apenas ser percebida se o ouvido estiver aberto. O homem de Deus, o discípulo verdadeiro «grita dos telhados» a presença de Deus, a transmite com sua confiança e entrega amorosa mesmo numa situação absurdamente desumana. Isto faz a diferença. O discípulo participa de modo reflexo mas com todo o consciente envolvimento, como seu “sim” á «loucura de Deus» (1Cor. 1,25) coma qual o Onipotente se fez impotente, dobrando-se à liberdade do homem que pode escolher entre um mundo com Deus e um mundo sem Deus.
Permito-me encerrar com as palavras de uma poesia de uma pessoa, Dietrich Bonhoeffer, que morreu nos campos nazistas, um teólogo luterano, uma alma privilegiada que não conseguiu perder a sua profunda relação com Deus naquele lugar que outros definiram como o “lugar da morte de Deus”.

“Cristãos ficam ao lado de Deus na sua paixão.É isto que distingue cristãos de pagãos. «Vocês não conseguem vigiar comigo nem por uma hora?», pergunta Jesus no Getsêmani.
Isto é uma inversão de tudo o que o ser humano religioso espera de Deus.
O ser humano é conclamado a compartilhar o sofrimento de Deus por causa do mundo sem Deus.” (Cristãos e pagãos)

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