quinta-feira, 4 de setembro de 2008

23° Domingo do Tempo Comum (Pe. Carlo)

A leitura do trecho do Evangelho com o qual Deus quer enriquecer o nosso caminho de fé no dia de hoje, parece evidenciar imediatamente uma situação com a qual somos bem acostumados a conviver. Como em poucos casos estão colocados uma à frente da outra as duas mentalidades que o Novo Testamento chama a “do mundo” e a “do homem novo”. É no terreno da correção recíproca que vem à tona com a mais clara evidência a impostação de fundo que demos à nossa vida. É na correção recíproca que descobrimos aspectos de nós mesmos que em outros contextos não se manifestam. Creio que nunca como hoje seja tão importante e tão expressiva a correção recíproca pois, mais que tantas palavras, a maneira de viver este aspecto tão essencial da vida cristã, fala aos homens de Cristo e do amor que por ele sentimos; fala do respeito que temos pelos membros de nossa comunidade; fala de quanta coerência existe entre o que pregamos e o que vivemos.
Poucas atitudes e meios que temos à disposição são tão eficazes hoje para anunciar o Evangelho como a dinâmica da correção fraterna. É bem mais penetrante do que muitas técnicas que aplicamos às pastorais, aos “organogramas”, à propaganda etc., pois estes instrumentos falam de fora para dentro do homem e, por causa disto, precisam de uma série de suportes que dêem credibilidade a o que se transmite. Por outro lado, o testemunho de uma mentalidade diferente da comum, manifestada na correção fraterna, fala à partir do interior do homem. Ao ver uma dinâmica de correção que seja fraterna, ninguém precisa ser convencido de nada, porque por si mesma a pessoa descobriu que naquela atitude vive e se encarna realmente uma mentalidade nova, não a “do mundo”. Por conseqüência é imediata a pergunta que projeta a pessoa fora de seu limite: “O que leva eles a agirem assim?”.
Porque a correção é tão atual e tão marcante testemunho de fé? Creio que seja necessário levar em consideração, de antemão, o contexto cultural no qual estamos mergulhados.
Progressivamente foram colocadas à margem do convívio social as verdades objetivas, os princípios, os pontos de referência comuns; certo ou errado, parecia em primeira instância dar uma maior liberdade e autonomia à pessoa a qual, assim, se percebe imediatamente capaz de afirmar sua unicidade num mundo massificador. Creio que isto também possua seus lados positivos. Contudo o custo está sendo muito alto e o reverso da moeda cheio de lágrimas silenciosas que brotam da solidão. A recusa de valores interpretados como coisas que limitam a liberdade de opinião e ação, acabaram provocando um perigoso relativismo que se demonstrou mais aprisionador do que as regras. Diante da convicção, instigada de que os valores não representam validade universal e absoluta, começaram a faltar pontos de referência e, cada vez mais aguda, se faz a pergunta: qual o caminho que devo seguir, já que não encontro em mim a felicidade que busco? Cada um tem sua resposta para a própria vida construída sobre um projeto particular; mas ao que parece, este esquema de pensamento está declarando sua falência generalizada, em nossas culturas e estruturas sociais.
A alternativa que a fé cristã oferece, tem as condições de romper estes vínculos da solidão existencial, pode realmente, como diz o Evangelho «desligar», soltar, libertar. Como? O primeiro passo que a correção nos oferece é o fato de sermos capazes de reconhecer que estamos presos. Isto já é muito, já é o início do processo da libertação que Jesus oferece (não aquela que as pessoas buscam com suas mãos). Todos nós temos experimentado com maior ou menor força as reações que temos quando alguém nos faz alguma observação! Às vezes nos enrijecemos, às vezes nos sentimos ofendidos, em outros casos pensamos que o outro não pode entender o que estamos passando, às vezes achamos que o outro quer impor sua opinião sobre a nossa... Enfim, é extremamente variada a maneira coma qual reagimos toda vez que alguém nos diz ago de nós mesmos que não estamos vendo.
É tão raro encontrar alguém que agradece do fundo do coração as palavras de um outro que corrige! Como é raro! É tão raro quanto encontrar pessoas realmente livres. Pois este apego é o reflexo da “mentalidade do mundo” que ainda opera nu cristão a caminho rumo à liberdade verdadeira. Se quisermos conhecer-nos de verdade, se quisermos conhecer o outro que está ao lado, o contexto melhor para faze-lo é este: na correção. Ali descobriremos quanto somos apegados a nos mesmos, quanto somos dispostos a perder, quanto somos capazes de confiar em alguém e, conseqüentemente, quanto somos objetivamente capazes de seguir a Jesus –e não uma idéia que construímos a seu respeito.
Uma vez que aprendemos a aceitar as observações dos outros, será mais fácil o passo seguinte: descobrir que o outro realmente me quer bem. Descobrir que ele não me diz isto ou aquilo com segunda intenção, mas porque realmente quer me ver feliz, já que enxerga em mim exatamente aquilo que eu não posso enxergar. Surge assim uma atitude de gratidão por quem está aparentemente “invadindo a privacidade de minha vida” (dificuldade esta, ligada ainda à “mentalidade do mundo”). Quando conseguirmos viver esta atitude de gratidão com as pessoas que Deus colocou ao nosso lado,com os nossos irmãos, teremos aprendido também como viver uma relação mais adulta com Deus. Saberemos agradecer mais, quando algo acontece diferentemente de como havíamos imaginado, quando Deus corrige a nosso história particular para projetar-nos numa história bem mais ampla. Ver o outro como irmão e não como rival é o principio da comunhão, da autêntica comunidade cristã que possui regras bem diferentes das comuns.
Considerar Deus como “rival do homem” foi a base do pecado narrado nos primeiros capítulos de Gênese. A correção fraterna, vivida no estilo cristão, reflete a intima disposição do homem a deixar-se conduzir por Deus, em reconhecer que Ele quer o nosso bem, que não é “rival”, que não quer depauperar o homem de sua riqueza essencial. É um verdadeiro louvor a Deus pois com ela escolhemos cada vez deixar-nos redimir da solidão do egoísmo, que faz sofrer, para mergulharmos confiantemente na profundeza da amorosa atenção de Deus; é oração encarnada. Estar contente de ser corrigido é renunciar à auto-realização e assim deixar Espírito de Deus realizar em nós aquilo que somente Deus está vendo, tal como um escultor vê num bloco de mármore a imagem que está em seu interior. Ao escultor cabe somente extraí-la,
assim como Michelangelo extraia o prisioneiro do mármore (figura ao lado: “Prigioni” ).
Amar o fato de ser corrigido, renunciar ao endurecimento do coração, é uma das mais profundas lutas contra o pecado; é uma das que não fazem alarido, mas transformam realmente as relações entre as pessoas. É bem mais difícil do que lutar contra a “injustiça”, a “marginalização” etc. coisas estas que cabem também à Igreja, com certeza, mas nenhuma libertação prescinde da libertação do coração do homem, pelo contrário, esta é a que dá fundamento àquela.
É o nosso culto, agradável a Deus, enquanto nos recoloca constantemente na atitude de conversão que decidimos com o Batismo. O Evangelista diz: «Se dois dentre vos na terra estiverem concordes...», para indicar a belíssima relação que nasce com a correção fraterna; o que nós traduzimos com “concordes” ou “de acordo”, na língua usada por Mateus é: “sinfonia”. A correção fraterna, feita e acolhida por amor, é como uma melodiosa harmonia que sobe aos ouvidos de Deus em cada nosso sim, em cada nosso pequeno grande ato de abertura que permite ao Espírito agir e libertar o coração aprisionado.

Um comentário:

David disse...

Também faço um trabalho com textos dominicais em meu blog.
Pax Christi!

http://reinoeucaristico.blogspot.com/