sexta-feira, 17 de outubro de 2008

29º Domingo do Tempo Comum

Como os anteriores, também o texto que hoje a liturgia nos oferece, está inserido teologicamente dentro de um contexto escatológico. Na última semana de Jesus em Jerusalém (período em que é ambientado o episódio) o Evangelista vê os eventos finais da história, vê as atitudes definitivas do homem e o desvelamento da verdade. Na medida em que se aproximam os eventos finais, também se torna mais agudo e evidente o conflito entre a verdade e a mentira, entre Jesus e o maligno. Sempre mais a verdade se mostra por aquilo que é, e o mal se revela por aquilo que é. Na resposta de Jesus aos discípulos dos fariseus e dos herodianos: «Por que me preparais uma armadilha?», encontramos a mesma expressão com a qual o Espírito dá início ao conflito entre o Reino de Deus e o reino do demônio, de fato o verbo “periazw” (preparar uma armadilha) é usado propriamente em relação ao demônio, por exemplo, quando das tentações no deserto (Mt. 4,1). É também usado no Antigo Testamento para indicar os inimigos de Deus enquanto tocaiam o homem amigo de Deus (“o justo”). A armadilha é propriamente uma traição, algo que se mostra de um determinado modo agradável, mas esconde um perigo para a vida. É o «laço do caçador» (Sal. 124,7). É uma característica própria do mal e do maligno mostrar um aspecto e ocultar o outro; é a meia-verdade, pior do que a mentira. Nunca o mal se apresenta como mal, ao contrário (!); desde as primeiras páginas do Gênese a serpente se faz conhecer como “alguém que quer o bem” de Eva e de Adão, o bem do homem. A serpente quer a “emancipação” do poder de Deus para que o homem seja como Deus. Ela faz isto com uma estratégia aqui muito bem identificada: a hipocrisia. A verdade e a hipocrisia conflitam sobre o mesmo terreno que é o coração do homem, o lugar onde este decide “quem” colocar no trono que pertence a Deus.
É nesta ótica que o trecho do Evangelho nos oferece um caminho de reflexão, que nos aprontamos a percorrer para nos perguntar, com Mateus, “quem” colocamos no trono do nosso coração, a “quem” escolhemos servir.
As primeiras palavras do texto nos dão desde o início o clímax no qual se verifica a situação: imediatamente aparece a não-verdade, fariseus e herodianos, inimigos entre si, estão de acordo, contra Jesus. Uma típica característica do mal: duas pessoas más só se unem se for “contra” alguém. Cada uma por interesse próprio. Fariseus e herodianos não tinham a coragem de enfrentar diretamente Jesus; embora tivessem decidido matar Jesus, tinham medo da multidão a qual -como nos diz o trecho paralelo de Marcos- “considerava Jesus um profeta” (Mc. 12,12). A não-verdade não se apresenta, escolhe atalhos, vias transversas; escolhe “discípulos” os quais poderiam, em caso de necessidade, ser dados como culpados de errônea interpretação, de iniciativa pessoal... enfim, o homem mau deseja sempre se sair de mãos limpas, a culpa recai sempre sobre outro. Não foi assim com Adão? «A serpente me enganou... A mulher que “você” me deu... »; culpado é sempre outro, e quando não há mais ninguém para culpar, então o culpado é Deus (“você me deu...”).
A máscara da mentira se esconde sempre atrás de uma linguagem lisonjeira, não há meio maior de atrair uma pessoa numa armadilha do que solicitar o amor-próprio, o comprazi mento de que somos bem considerados: «... Sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus». Um mínimo de orgulho já é o suficiente para cair numa cilada do maligno, mas Jesus não procura o pláuso das pessoas e isto lhe permite ver o mundo a partir da ótica do Pai. Guardar em nosso coração, com zelo e atenção o lugar que pertence a Deus, nos permitirá sempre ver as coisas por aquilo que estas são; resguardará-nos sempre das meias-verdades que se insinuam lenta e constantemente.
A armadilha era tão bem preparada que, teoricamente não teria saída. Creio que algumas informações possam ser úteis para compreendermos o fato e a reação de Jesus. Quando Roma conquistava um território exigia um juramento de fidelidade ao Imperador, que se oferecesse um sacrifício para ele e que se pagassem os impostos; fora isto a intervenção romana aconteceria somente em caso de motim. As moedas de prata ou de ouro eram forjadas exclusivamente em Roma (as de cobre podiam ser forjadas em todo o Império) e traziam a efígie do Imperador; a moeda era o símbolo da extensão das terras que pertenciam ao Império como uma só coisa. Pagar o “tributo” significava, simbolicamente, reconhecer a soberania do Império sobre as terras; era bem mais do que uma das várias taxas que serviam para as despesas administrativas. Ora, se Jesus tivesse afirmado que era necessário pagar o tributo estaria contradizendo toda a Escritura, segundo a qual o território de Israel era a herança que Jahvé deixava como propriedade a Israel. E mais, pagar o tributo significaria cometer o mesmo pecado de Davi quando quis fazer o recenseamento (2Sam. 24), gesto este que manifestava o desejo de Davi de controlar Israel, fazer-se “dono” de um povo que pertencia exclusivamente a Deus. E ainda mais: em todas as “tefillah” (orações) que se rezavam no Templo ou em casa, existia a expressão: “Jahvé é o Senhor de Israel”; legitimar o tributo significaria então, reconhecer que uma Autoridade humana pode tomar o lugar que pertence a Deus. Legitimar o tributo desagradaria aos fariseus e zelotes e agradaria aos herodianos, os quais tinham benefícios vindos da administração romana. Por outro lado, se Jesus tivesse proclamado ilegítimo o tributo, estaria no mesmo instante declarando-se líder de uma revolta (como fizera Judas o Galileu em torno do ano 6 dC., o que ocasionou a dura repressão romana), agradando os zelotes e fariseus que esperavam somente um gesto do “Messias” para iniciar mais uma revolta.
Como Jesus se coloca? Realmente nos deixa admirados a perspicácia de Jesus. Em primeiro lugar manifestou a eles mesmos a hipocrisia com a qual agiam: pediu uma moeda e, engaçado, eles tinham no bolso uma moeda! Ora, é útil saber que simplesmente tocar uma moeda em cuja face estava escrito “dominus ac deus noster” junto dom a efígie do Imperador (“Nosso senhor e nosso deus”, título que o imperador Domiciano adotou, mas que já se encontra alhures) colocava o judeu em estado de impureza ritual, era algo realmente repugnante... mas, eles tinham no bolso.
A resposta de Jesus atinge o centro da questão, não fatores marginais como aceitar ou não um sistema invés que outro. Nenhuma pressuposta “revolução” é capaz de colocar o homem no lugar que lhe cabe, uma revolução somente substitui o sistema, como já vimos pela nossa história. Todo sistema traz em si e cria “estruturas de pecado” (como escrevia João Paulo II –Solicitudo Rei Socialis, 36) quando determina como verdades “atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo”; entre estas primam “a cobiça exclusiva do proveito e a sede de poder, com o propósito de impor aos outros a própria vontade a qualquer custo” (idem, 37). Nunca um sistema conseguirá dar ao homem aquilo que ele precisa para ser homem se não levar em consideração valores morais que, em última análise, remontam a Deus. A história nos ensina como a dignidade da pessoa humana começou a ser respeitada à medida que o cristianismo entrou a fazer parte de culturas e nações, fazendo desaparecer a escravidão, o comércio de pessoas, o infanticídio sem necessidade de julgamento, etc. Um Estado que coloque regras que prescindem das de Deus é inevitavelmente destinado a implodir, como a história nos mostra, como assistimos acontecer e acontecendo com os dois grandes sistemas que o homem inventou para se “emancipar de Deus”: o socialismo e o capitalismo. Permito-me citar quanto disse certa vez numa reunião, um homem do qual tive sempre muita admiração, o agora Card. Cláudio Hummes: “A revolução Francesa quis substituir a Deus com os ideais laicistas sintetizados nas palavras: Liberdade, Igualdade, Fraternidade (note-se, para não cair em mal-entendido, que o conceito de “fraternidade” da revolução francesa não era o conceito de “fraternidade” cristão). O liberalismo está mostrando os seus lados obscuros como já fez o comunismo. Não será a hora de mostrar o que é a fraternidade cristã?”. Deixando assim entender que o próximo passo, a “fraternidade” não cristã, (muito semelhante, em 1789, àquilo que hoje chamamos de “mundo global”) pode ser mais perigoso ainda. Afinal, quem vai controlar tudo? Quem tem nas mãos os critérios para enviar ou não um contingente a fim de findar uma guerra, ou deixá-la correr? Quem decide sobre o que é “vida”? Quando nasce ou termina? Quem decide o que vestir, que moeda usar, quanto vale um produto cotado numa fantômica bolsa que cria pobreza e riqueza num só dia? Todos respondem sempre: é o “sistema”, o “sistema não funciona” e assim por diante...
A proposta de Jesus não é uma “terceira alternativa” a sistemas existentes, como não é uma utópica anarquia. Estruturas mais humanas somente nascem quando os homens são “mais humanos”. Devolver a Deus o que é de Deus é recordar ao homem que ele é “imagem” deste Deus, do Deus que se faz conhecer objetivamente e publicamente na pessoa, nas decisões, nos atos e nas atitudes de Jesus. Devolver a Deus o que é de Deus é o esforço que a Igreja deve e pode oferecer ao mundo. É o empenho constante e atento, delicado e forte de restituir ao homem o sentido da sua existência. A ação da Igreja foge de um intimismo sentimental que começa e termina dentro da pessoa: é uma decisão viva e visível em favor do homem na sua relação com Deus pois, quando uma pessoa possui a paz dentro do seu coração, quando entende o sentido da sua existência, quando se percebe como amado e capaz de fazer o bem, esta pessoa é então capaz de construir relações alternativas, justas, respeitosas daquela dignidade que a pessoa humana possui. Devolver a Deus o que é de Deus é resgatar o homem do “laço” da meia-verdade, da armadilha existencial que pode deixá-lo mais escravo do que o fato de pagar ou não um tributo.

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