quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Nossa Senhora Aparecida (Pe Carlo)

A Maria desde os primórdios a Igreja invoca com o título de “Mãe de Deus e Mãe nossa”. A primeira invocação é resultado de um profundo caminho de reflexão sobre a relação entre Maria e Jesus, o Filho de Deus; a segunda nasceu imediatamente no coração dos cristãos bem antes que algum Concílio refletisse sobre tão grande significado. Nasceu do amor dado e percebido na fé mais simples das pessoas. Debaixo da Basílica de Nazaré existe o mais antigo sinal desta devoção à Mãe: um anônimo deixou, marcadas para sempre na pedra, as inicias da “Ave Maria”. A leitura do Evangelho de hoje poderá suscitar em nós momentos de reflexão sobre um tão grande valor que nem sempre é considerado como merece. Talvez o Evangelista queira nos indicar de Maria justamente esta sua participação ao nosso caminho. Peçamos a Deus que guie nossos passos com humildade e abertura na leitura, para podermos contemplar tão elevado mistério.
Como sabemos, quando nos encontramos diante de um texto de São João, a nossa leitura deve necessariamente ultrapassar um dúplice limite restritivo, o primeiro é aquele que considera seus escritos como uma descrição narrativa, o segundo considera -os como uma espiritualização vaga e revestida de um significado alegórico-representativo, sem base ou fundamente objetivo. Uma vez saídos destes possíveis preconceitos, poderemos entender aquilo que o Evangelista quis deixar como patrimônio da fé cristã. O texto foi escrito quando a fé cristã já era consolidada em grande parte da área Mediterrânea; Maria, após a morte de Jesus, havia transcorrido o restante de sua vida junto ao Apóstolo. É preciso ver nesta leitura, então uma reflexão a posteriori do próprio João; reflexão que ele propõe a todas as comunidades, como patrimônio essencial da fé. Percorreremos –parcialmente- o texto em seu significado simbólico-messiânico e em seu significado quanto à salvação do homem inteiro etc. Desde o início não podemos desconsiderar que aqui Maria ocupa um lugar de relevo. Logo, se o texto diz respeito ao interio projeto salvífico, gravíssimo erro é pensar que Maria não tenha nada a ver com o caminho da autêntica fé cristã, ou reservar para Ela um lugar tão secundário que dá a impressão de ser supérfluo. Se assim fosse, não se explicaria por qual motivação o Evangelista tenha dado tanta ênfase à Mãe quando, se fosse verdadeiro o contrário, a narração poderia perfeitamente correr sem que ele fizesse menção alguma de Maria. Logo, nos aparece de imediato uma profunda verdade, intuída desde os primórdios da Igreja: Maria é parte integrante do caminho que Deus propõe ao homem, em Jesus Cristo. Os Evangelistas Mateus e Lucas salientam o valor da presença de Maria no projeto da Salvação ressaltando a Sua adesão ao projeto de Deus quanto ao nascimento de Jesus. Maria está no início da nova Aliança; a sua figura parece esvaecer na medida em que o Evangelho aponta sempre mais para o evento da Cruz, para, depois, reaparecer com toda a sua força no “dia depois do sábado”, da Ressurreição, ao lado dos Discípulos, na comunidade nascente.
João nos aproximará de Maria por outros caminhos. No final deste trecho, o Evangelista nos dá a chave de leitura: «Este foi o primeiro sinal». Um sinal é algo compreensível a quem se dispõe a entender o seu significado, ele não explicita ostensivamente o conteúdo ao qual se refere. Nunca o sinal é importante por si mesmo, mas enquanto remete a um valor maior que carrega em si. Assim, se ficarmos presos ao “milagre”, com certeza não poderemos entender nada mais do que “o milagre”. Em que consiste, então, o conteúdo do “sinal”? Bem, consiste naquilo que os discípulos viram: «a glória de Deus» e o nascer da própria fé de modo correspondente a Jesus como ele estava se revelando. Os discípulos de Jesus puderam ver a glória e conhecer a própria fé. Não podemos não ver neles todos os discípulos de Jesus, nós mesmos. Tudo o que acontece no fato narrado, tudo, sem exclusão de nada e ninguém, é “sinal”, que conduz à contemplação da glória de Deus e ao acontecimento da fé autêntica. Que grave engano quando alguém retira da Escritura o que não lhe interessa por puro preconceito e orgulhosa atitude!
Na história religiosa de Israel, desde os textos mais antigos do AT, o contato do homem com Deus, a experiência que este sente diante de Deus, é frequentemente descrita com a palavra “glória”. Digamos, para exemplificar (de um modo tão simplório que deixará arrepiado qualquer bom teólogo) que “glória” significa o “envolvimento de luz”, consistente e transparente –como um embrulho de celofane- que permite ao homem de ter experiência autêntica de Deus, mas não de “tocar” a Sua transcendência. Moisés ficou envolvido com a mesma “luz” de Jahvé a ponto de seu rosto “resplandecer” da mesma luz. Pois bem, é para isto que o discípulo é chamado: a ter a possibilidade de fazer uma experiência tão profunda de Deus que seu rosto fique resplandecente da mesma luz, para o bem do mundo. Cristo é a manifestação plena desta luz aos homens, os discípulos, a comunidade de fé será o lugar onde Ele deixará resplandecer a glória do Pai (tema tão querido no coração de São Paulo quando fala da Igreja). Não só, o sinal do qual fala o texto nos diz que é assim que os discípulos podem “crer”, podem ter certeza de que a sua experiência é autêntica, de que, quanto sentem dentro de si reflete o inteiro evento da vida, morte e ressurreição de Jesus; o Evangelho de João termina justamente com as expressões: “ver e crer” a fim de ter “vida”.
A festa de casamento se dá no “terceiro dia”; não é difícil perceber o sentido escatológico, definitivo, último, que João confere a tudo quanto será narrado em seguida. O “terceiro dia” é o da Ressurreição, é o longo dia da Igreja até à consumação da festa com o vinho novo. É assim que se explica a improvisa mudança dos verbos que mudam de tempo passado («houve», «foi convidado»…) para tempo presente («a mãe diz…»).
Na pregação dos Profetas, o julgamento de Deus e a sua ira contra o pecado são representados com a “falta do vinho” enquanto o que sinal que Deus abençoa e aprova o comportamento humano é a abundância de vinho (cfr. Am. 9,13ss; Jl. 2,19-24; Is. 25,6 etc.). Eis então que, atrás de um ato de Maria, que aparentemente pode parecer somente um gesto de atenção, delicadeza e outras atitudes que não podem ser negadas em Maria, existe algo de bem mais profundo. Trata-se de uma constatação existencial: o agir humano, sem o seu Filho é destinado a esgotar-se, será cada vez mais insuficiente para dispensar aquela felicidade que todos buscam. «Eles não têm mais vinho», não têm mais o que possa ser suficiente, sua religiosidade se esgotou em rituais e tradições, modos de agir e conformismo a regras. Sobressai, neste sentido, o número -seis- das talhas para a «purificação dos “judeus”». “Seis” é um número perto do “sete”, que indica plena realização, mas não alcança o “sete”; o sentido é, na linguagem Bíblica, a profunda e frustrante ilusão do homem de alcançar Deus com os seus próprios meios (a religiosidade feita de ritos e fórmulas), ou, pior, de se realizar sem Deus. As talhas de água são para “os judeus”, não para os que são chamados ao novo mundo que Jesus inaugura com o Reino. Certo dia os discípulos do Batista perguntaram a Jesus porque seus discípulos não faziam todas as abluções, ritos etc. previstos para a purificação; o Senhor responderá que a “purificação” dos seus se dará concomitantemente à alegria de se sentirem perto do Esposo; pelo fato de gozar da presença do Esposo, como numa festa (cfr. Mt. 9,14ss.). Jesus, porém não despreza o esforço humano, por quanto limitado este seja: o Senhor não usa “outra” água, uma água milagrosa, utiliza a mesma água que o homem usa, utiliza o que o homem de bem usa. Contudo, Ele é capaz de transformar tudo isto em “vinho”, isto é, num estilo de vida que realmente agrada a Deus, um estilo de vida onde a fraternidade, a convivência, os mais singelos e autênticos valores humanos são elevados ao seu mais alto significado. Este é o vinho que Jesus pode dar.
De repente, na narração a “Mãe de Jesus” é chamada simplesmente “Mãe” pelo Evangelista: ao sentir e partilhar as angustias latentes de uma festa destinada a terminar, ao interpelar o seu Filho para antecipar uma experiência do julgamento festivo de Deus, Maria se torna, para o Evangelista, a Mãe dos discípulos. Maria, agora, é mãe de João, de Pedro, de todos nós que precisamos aprender a “crer” para ver a “glória” de Deus e manifestá-la em nossa vida para o bem da humanidade que deseja a sua festa.
Surpreende, aparentemente, a resposta de Jesus. Às vezes a tradução literal («O que há entre mim e ti», de não fácil leitura) induziu os Protestantes a encontrar aqui o fundamento de que Jesus excluísse do seu ministério salvífico Maria. Não podemos deter-nos aqui demonstrando pela própria Escritura como tal leitura não seja feita em boa-fé. Na língua aramaica, falada por Jesus, significa simplesmente: «O que você quer dizer com isto?». Pois bem, com esta resposta de Jesus o Evangelista quer indicar que Jesus somente mais tarde, quando irá derramar o seu sangue, o cálice da Nova Aliança, somente no final de sua vida, poderá realmente dar ao homem tudo quanto é essencial para a salvação. Esta “hora” será a definitiva, naquele banquete poderia dar somente um sinal. Maria entende. Hoje, mãe do fiel, pessoa que está dentro da comunidade de fé, pede a todo discípulo que queira entender o Filho que simplesmente “faça o que lhe for pedido”, ao resto o Senhor proverá.

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