quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Dedicação da Basílica do Latrão (Pe. Carlo)

“Mãe de todas as Igrejas”

Havia passado cerca de trezentos anos da morte de Jesus. As comunidades cristãs já não estavam mais vivendo com aquele entusiasmo inicial que sempre caracteriza a primeira fase do encontro com a fé.
Daquele tempos em que nas comunidades se esperava em clima de serenidade e alegria a iminente volta de Jesus, somente restava a lembrança. Tais sentimentos foram cedo substituídos -como a de Tessalônica- com o pesadelo, com a oprimente angustia que ainda ecoava naquilo que restava de centenas de famílias destruídas pelas perseguições.
Como na vida de Jesus, também na das comunidades cristãs ao inicial sucesso se associara o medo, a traição, o cheiro do sangue. Como na vida de Jesus também em suas comunidades as perguntas sem respostas tinham se tornado o pão de cada dia. Da expectativa inicial cheia de ímpeto propulsor restava somente a vaga esperança que terminassem definitivamente as matanças e os horrores das perseguições que espalhavam lágrimas entre os cristãos. A Igreja, frágil e dizimada, não tinha mais muita esperança de sobrevivência; esta, o “novo Israel”, se perguntava muitos anos depois o que os antigos Israelitas haviam se perguntado na época do exílio, no salmo: «Terá o Senhor nos rejeitado para sempre? Afinal, a sua promessa terá falhado?» (Sal 76,8).
Como sempre, quando terminam as esperanças humanas, entram em jogo as respostas divinas: o Imperador Constantino em 313 reconheceu a legitimidade e o direito à existência da fé cristã, tornando-se ele mesmo um cristão. O mundo ficou pasmo ao receber a notícia que na colina do “Latrão”, em Roma, no coração do mundo, foi batizado o Imperador. Aquele que fizera de si um deus, decidira tornar-se servo de Deus; o homem mais poderoso do mundo optava pelo estilo de vida proposto por um galileu crucificado trezentos anos antes, numa remota província do seu Império.
Foi bem naquela colina, ao lado do lugar onde o Imperador foi batizado que surgiu a primeira basílica cristã, dedicada inicialmente ao Salvador (a palavra tinha um grande relevo na época, pois tal nome era dado exclusivamente ao Imperador); mais tarde, Gregório Magno a dedicou aos Santos João Batista e João Evangelista.
Mais que uma simples lembrança do episódio, hoje a nossa fé celebra a grandeza Daquele que, quando menos o esperamos, opera maravilhas. Celebramos um evento que nos faz lembrar profeticamente, qual será o desfecho final da história humana: «diante Dele se ajoelharão todas os Reis da terra» (Sal 71,11; Is. 52,15). Foi para recordar esta definitiva e eterna supremacia de Jesus que a igreja construída naquela colina foi chamada “Basílica”; de fato, em grego a palavra significa “do Rei”, do verdadeiro e definitivo rei: Jesus.
O Evangelho que a liturgia hoje nos propõe, nos ajuda também a entender a misteriosa continuidade entre a vida de Jesus e a vida de sua comunidade, da Igreja como Ele a entendeu, criou e entregou a Pedro. O Evangelista tentará introduzir-nos neste mistério que envolve a comunidade cristã a qual, então, não é de forma alguma uma organização como tantas, não é sequer um dos tantos modelo de pensamento; absolutamente não é uma “associação” geradora de opiniões quanto à ética ou moral da humanidade. De modo algum pode ser tida como uma como tantas outras formas de “chegar a Deus”, “uma religião como outras” como erroneamente se costuma dizer. Embora a Igreja tenha e viva uma religião, a sua essência se encontra alhures.
Procuremos debruçar-nos sobre um aspecto deste trecho do Evangelho.
O episódio se dá, como propositadamente é frisado, perto da «Páscoa dos Judeus». Como sempre, o Evangelista quer indicar com isto, que a “Páscoa de Jesus” é algo totalmente diferente. Estava perto a mais importante celebração da vitória da fé dos Judeus, o triunfo do projeto de libertação de Deus para com o povo que havia escolhido. No Templo se realizavam todas as cerimônias, principalmente as ofertas, orações e sacrifícios de cordeiros. Uma incrível organização tinha surgido em torno das atividades do Templo para fazer com que todos os Judeus, ali confluídos contemporaneamente, pudessem oferecer seus sacrifícios e ofertas, todos durante os dois dias da celebração. Centenas, milhares de cordeiros eram sacrificados para serem comidos ritualmente durante a noite nas casas dos judeus. Costuma-se, impropriamente, usar este episódio do Evangelho como censura de Jesus às atividades de comércio religioso. Ora, o centro da narração não parece ter esta finalidade, mesmo se é evidente o comportamento critico de Jesus a respeito das atividades que se desenvolviam diante das portas do Templo. É próprio da visão de fé de João não se deter nestas questões, mas intuir e ler nestas e através destas, os mais profundos mistérios que ligam Jesus à obra salvífica e ao projeto do Pai. Era, praticamente, necessário que se desenvolvessem atividades de comércio, pois era muito difícil para peregrinos que percorriam a pé grandes distâncias, trazerem também os animais para o sacrifício, em muitos casos era mais fácil adquiri-los em Jerusalém. Da mesma forma, sabemos que era proibida a entrada de moedas romanas (isto é pagãs) no Templo, só que a moeda que todos usavam e que tinha valor era a romana, contudo, para ser usada no Templo, precisava ser trocada; enfim, são várias as motivações que levam à criação de um comércio o qual, diga-se, nem sempre é negativo, aliás pode-se tornar um serviço.
Mas voltemos ao núcleo do nosso episódio. A primeira coisa que percebemos e que nos deixa questionando: porque a tropa de guarnição do Templo não interveio? Porque não forma autorizados a prender Jesus? Afinal o gesto aparentemente poderia ser visto como um ato de desordem, de tumulto... Porque os “chefes” somente perguntaram: «Qual o sinal nos dá para fazer isto...?». A verdade é que todos sabiam muito bem o que significaria aquele gesto. Desde o dia da consagração do Templo, enquanto Salomão pronunciava a benção de consagração, também assim manifestou suas dúvidas «Mas, de fato, habitaria Deus na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei!» (1Rs. 8,27) abrindo espaço para a insuficiência real do Templo com todas as suas estruturas religiosas. Anos depois, Ezequiel continuará reforçando mais ainda a convicção de que um dia Jahwé iria abandonar o Templo e a sua glória não se manifestaria mais ali (Ez. 10,18ss). Os exegetas da época, fariseus, escribas e sacerdotes conheciam muito bem esta questão, a qual pendia, como uma “espada de Dámocles”, sobre a instituição em torno da qual rodava toda a sua vida.
O desafio de Jesus era bem maior do que uma banal advertência religiosa sobre o fato de alguns se aproveitarem da religiosidade popular para obter vantagens econômicas. Isto é muito comum e não precisava de uma intervenção tão forte de Jesus.
Estamos diante de algo de extremamente inovador, algo que Jesus propõe como por um grito que vem do mais íntimo de seu ser: «Destruam este templo». Parece dizer: “Tenham a coragem de abandonar, destruir esta maneira de se relacionar com Deus. Não é mais necessário perder tempo em tentar agradar a Deus, Ele é quem vem a vocês!”. Sim, Jahwé estava vindo a todos os homens na pessoa do Nazareno.
O gesto de Jesus é uma belíssima expressão daquilo que na Escritura é chamado “a ira de Deus”: como um desespero carregado de uma força incomum para impelir a pessoa amada, o povo pelo qual Jesus estava dando sua vida, a desvincular-se de formas, para entrar numa realidade misteriosa que estava sendo oferecida. “Se tiverem a coragem de destruir este tipo de relacionamento com Deus, eu construirei um novo Templo para vocês, um novo lugar onde sempre e definitivamente tereis a possibilidade de se encontrarem realmente com o Pai”.
...E o que havia prometido naquele dia, Jesus o realizou para todos os que acreditaram Nele e a Ele se uniram na sua comunidade. Sim, a partir da Ressurreição de Jesus, a sua comunidade, frágil, cheia de medos e contradições, objeto de ataques de todos os lados, se entenderá como verdadeiro “Templo”, de Deus assim como o Senhor lhes havia mostrado: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles”. A primitiva comunidade cristã compreendeu este mistério e o transmitiu a nós como um tesouro precioso a ponto de o Concílio Vaticano II recordar que a comunidade reunida em torno de Jesus, a Igreja é permeada por um mistério que faz dela um “sacramento da íntima união de Deus com o gênero humano”. É o verdadeiro Templo, o lugar vivificado pela caridade e pelo Espírito do Senhor no qual todo homem pode encontrar-se com Deus.

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