sábado, 28 de fevereiro de 2009

1° Domingo da Quaresma (Pe Carlo)

Hoje é o primeiro domingo em que nos reunimos para meditarmos juntos sobre o grande dom que a liturgia nos oferece: a quaresma. É comum refletir sobre a Quaresma considerando-a como momento passageiro, transitório, como preparação para a Páscoa, o que não deixa de ser verdade. No entanto, creio que possamos ver neste período litúrgico como que o espelho de grande parte da nossa vida: esta não tem valor somente em função de um futuro, mas também o futuro não existe sem ela. Como a Páscoa de Jesus é o desfecho do conjunto de toda a sua vida assim também a nossa Páscoa será o resultado das passagens necessárias que percorremos para trilhar o caminho de Jesus.

Com certeza podemos encontrar, nos concisos eventos narrados por Marcos, aquela profunda analogia que existe entre a vida do Senhor e a nossa existência cristã. O trecho que antecede o nosso encerra com estas palavras: «Tu és meu Filho amado, em me comprazo», palavras que não somente Jesus ouviu na ocasião de seu batismo, mas que foram ouvidas por todos, quase a indicar a meta para a qual aponta o sentido da existência de todo homem: já que é filho de Deus, precisa se tornar aquilo que é no mais profundo de si mesmo. É um re-encontrar a própria essência para ser plenamente homem, como Deus o havia imaginado. Ora, isto exige um caminho e a vida de Jesus será interpretada pelo Evangelista como o caminho através do qual o homem alcança o mais profundo de si mesmo, encontrando-se com Deus. Não podemos também deixar de perceber uma afinidade com o início da história com a qual Deus se faz conhecer: Ele pediu para Abrão de seguir as indicações que lhe daria, mas estas indicações o conduziriam ao deserto, desconhecido para ele e a sua tribo. Deste modo podemos ler que será o Espírito a conduzir Jesus no mesmo “deserto”. É o caminho de todos nós para conhecermos a Deus como Ele quer se deixar conhecer. Esta experiência que Marcos quer comunicar-nos se desenvolve no cenário típico dos grandes dramas de Israel, o lugar das definitivas decisões que poderiam conduzir aquele povo tanto para a liberdade quanto para a escravidão: o deserto. Foi no deserto, logo após a saída do Egito que Israel teve que fazer a primeira e decisiva opção em favor da liberdade. Esta opção traria consigo a insegurança de um caminho desconhecido, por outro lado seria impossível atravessar aquele deserto se não houvesse implantada, na alma daquele povo, uma confiança extrema em Deus, confiança que, dia após dia, deveria ser renovada. O livro do Êxodo narra nestes termos a primeira grande tentação de Israel: «Quem nos dera tivéssemos morrido pela mão do Senhor, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comíamos pão a fartar! Pois nos trouxestes a este deserto, para matardes de fome toda esta multidão» (Ex. 16,3). Israel, mesmo tendo saído do Egito, poderia ainda escolher de voltar para o lá onde teria garantidas as “panelas cheias de carne” e as “melancias”, embora isto pudesse significar continuando numa condição de «não-povo» (cfr. Os. 9,1). O deserto é também o lugar em que Deus fala mais intensamente ao coração das pessoas e, nestes momentos de extrema solidão, freqüentemente acontecem os milagres da alma. Neste sentido é maravilhoso o poema que lemos no cap. 2 do profeta Oséias: quando este conduzirá a esposa infiel ao deserto, quanto ela tiver perdido tudo em que confiava, ele poderá «falar ao seu coração» de modo que possa realizar aquele salto qualitativo com o qual não «chamará mais o seu marido de “senhor”, mas de “esposo”». É, logo, o desejo de amor incondicional e mais autêntico que conduz as pessoas da Bíblia para o deserto é, logo, o Espírito, de amor de Deus par conosco que nos conduz, como Jesus, para aquele deserto que surge improviso na nossa vida quando menos o esperamos. , quando menos estamos prontos. É um lugar de conflito da alma, de situações extremas, de solidão... um lugar em que a dúvida não pode ser partilhada com ninguém e estamos sozinhos para tomar aquela decisão que pode definir de um modo ou outro o restante de nossa vida.

«O Espírito impeliu Jesus no deserto» como todos os homens que queriam se reconhecer como os “filhos amados em que Deus se compraz”. Plasticamente nos são sugeridas exatamente as sensações que todos nós sentimos em determinadas circunstâncias. Quando estamos neste “lugar” parece que nos sintamos abandonados por Deus, no entanto, paradoxalmente, neste momento, neste “Lugar” onde não podemos mais ser conduzidos pelos nossos critérios, pela razão, pela certeza que sempre tivemos... neste momento é “o Espírito” que nos conduz. Quando tudo não nos conduz mais, é o Espírito que conduz. Então isto significa não somente que Deus não nos abandonou, mas que Ele quer enriquecer-nos com algo a mais, bem quando sentimos que estamos em condições de extrema precariedade.

Mais uma consideração que surge à mente lendo o nosso trecho: o início do Evangelho, o início da história de liberdade e felicidade de cada um, nasce em território do demônio; de fato sabemos que era convicção que o demônio habitasse estes lugares de morte. O bom anúncio (isto significa a palavra Evangelho) de que Deus está próximo, se compreende no lugar do sofrimento; é aqui que a esperança, a certeza da proximidade de Deus, derrota o mal em seu próprio território. As imagens das “feras” e dos “anjos” indicam os dois mundos em conflito: Jesus é o ponto de divisão entre os dois mundos, os que sevem o mal e os que servem Deus; a vida de Jesus será capaz de declarar definitivamente o limite entre os dois mundos.

Para que a vitória de Jesus se torne também a nossa vitória, Jesus nos pede que aprendamos a arte de crer e de convertermo-nos continuamente.

“Crer” é algo mais do que uma simples aceitação de um conceito, de uma idéia ou de algo que nos é contado. Quando nos falamos em “crer” em alguém, o último elemento que sobre o qual nos baseamos para dizer “sim” ou “não”, é a nossa razão. Quando realmente precisamos tomar uma decisão total, o que fala mais alto é a intuição, o sentimento, a abertura ou fechamento instintivo que cultivamos em nossa vida e assim por diante. Crer em alguém é dizer um “sim” à inteira pessoa e, a partir daí, ao valor da sua palavra. Ora, para poder conhecer uma pessoa é preciso absolutamente conviver com ela, saber como ela reage, o que para ela é importante, “sentir” seus sentimentos etc. Então Jesus vem dizer-nos: “caminhem comigo, se arrisquem, sejamos amigos, vejam se mereço o vosso crédito...” É isto que significa para Jesus “crer”.

A fé não é crendice nem ideologia, é vida ao lado de alguém, para conhecê-lo e deixar-se conhecer. No momento em que somos capazes de dar um crédito exercemos um maravilhoso ato de liberdade, dizemos a nos mesmos que somos capazes de quebrar as barreiras naturais do medo que nos impõem aqueles limites nos quais atola a nossa vida.

Quem sabe dar um crédito não tem medo da vida, não tem medo do outro, é capaz de arriscar e ver o mundo não como um inimigo do qual defender-se. Quem sabe dar um crédito está convencido de que o amor é ainda possível!

Contudo, “crer” implica um longo processo no qual também nos deixamos interrogar pela presença do outro. A pessoa que está a nosso lado passa a ser, após um período de convivência, o espelho de quem somos nós; é ela que nos diz, implicitamente, o que desconhecíamos de nós mesmos. Na verdade será ela quem nos revelará os melhores e piores aspectos da nossa personalidade, oferecendo-nos, assim, a autêntica possibilidade de sermos livres, livres de nos ver por aquilo que realmente somos, aceitar-nos até nos aspectos que gostaríamos de esconder a nós mesmos e ao mundo.

Aqui entra o segundo pedido de Jesus: “Converte-te”.

A conversão é o processo que nos mantém constantemente projetados para frente; é a dinâmica que permite de ver o dia de amanhã como algo novo, capaz de não deixar-nos envelhecer e morrer de tédio interior. A conversão é o apelo de Jesus para renovar dia apos dia as nossas forças, para fazer-nos arriscar de novo, assim como o jovem que considera a sua vida como um desafio e, neste desafio, encontra a sua vitalidade.

Quando percebemos que está na hora de nos convertermo-nos, re-despertamos em nós a capacidade de superar a nos mesmos, de projetar-nos num infinito que tem o próprio Deus como limite. Creio que seja oportuno não considerar a conversão como um único ato através do qual, por uma graça específica de Deus e pela sua generosa resposta o homem “muda” de vida de repente, como por um ato mágico. Trata-se, antes de um longo, interminável processo rumo ao Infinito de Deus, no qual cada um de nós pode ver-se como imagem deste Deus, que é sempre igual a si mesmo e continuamente novo, vivo. A palavra, originariamente significa “mudar de ponto de vista”. Aqui, creio, a conversão encontra toda a sua força.

A nossa maneira de avaliar e compreender toda a realidade que nos cerca, passa através de alguns filtros que nós mesmos colocamos. Isto é necessário e natural, no entanto estes mesmos filtros fazem com que nem sempre a realidade vem à nossa consciência pelo que ela é, mas por como nós lhe permitimos de entrar após ter ultrapassado os filtros da nossa cultura pessoal, convicções, experiências etc.

E se a realidade fosse diferente daquilo que vemos? Pois bem a conversão, implica na capacidade de permitir a Jesus de mostrar-nos o que de nós mesmos não conhecemos. Paulo pedia com insistência aos cristãos de Corinto: ”Deixai-vos reconciliar”, permitam a Deus de dizer-vos quem vocês são, para que sejam verdadeiramente livres.

Jesus tem um mundo a revelar-nos, tem uma boa notícia a comunicar-nos: não é preciso procurar longe o que está tão perto, basta permitir-Lhe de mostrar-nos o outro ponto de vista, a outra realidade que não conseguimos ver.

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