sexta-feira, 6 de março de 2009

2° Domingo do Tempo Quaresmal (Pe Carlo)

Estamos hoje na segunda etapa do caminho quaresmal que, de algum modo, quer sintetizar o inteiro caminho da vida que Deus oferece a todos nós em Cristo. O primeiro passo desta caminhada, como vimos na semana passada, consiste na adesão a Deus, adesão que passa pelo deserto e aponta para o “crer” ao Evangelho. É o primeiro momento da conversão. O texto que hoje meditamos precisa ser lido também nesta ótica; é um fato que nos reconduz à situação existencial que Deus continuamente propõe às pessoas que conseguiram dar o primeiro passo. Quanto é narrado é muito complexo e, mais complexa ainda, é a leitura em seus detalhes, fato pelo qual me permito apontar somente alguns aspectos que, espero, possam ajudar a receber com amor aquilo que Deus quer sempre nos oferecer.

A leitura que é realizada em algumas assembléias litúrgicas, infelizmente omite uma parte do versículo 2, com o qual começa a narração; é uma pena, porque esta maneira de ler não permite ao ouvinte entender o motivo, a razão da Transfiguração de Jesus, reduzindo-o assim a um simples episódio espetacular que se encerra com uma admoestação de tipo moralista. Evidentemente não era esta a intenção do Autor.

A nossa leitura começa assim: «Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João»; o episódio, então se deu no sétimo dia; seis dias depois do quê? O que acontecera seis dias antes? Bem, o leitor do Evangelho de Marcos sabe muito bem que toda a sua teologia gira em torno da profissão de fé de Pedro, isto é, daquele momento em que Pedro reconhece em Jesus o Cristo esperado. Contudo, um momento tão rico e profundo espiritualmente, ficou assombrado por uma profunda incompreensão de Pedro respeito a Jesus: para Pedro o Senhor era um Senhor vitorioso, triunfante, esquivo de todo ataque do mal. Em Pedro aconteceu (analogamente a Jesus que foi conduzido no deserto para se defrontar com o demônio), que o próprio Satanás insinuava uma visão triunfalista, a qual não condiz com a lógica de Deus. Assim, o momento de maior intimidade é, paradoxalmente, o momento de maior distância entre os dois; é assim que age o Espírito quando gera aquela unidade que vai além das opiniões. «Seis dias depois» indica um tempo no qual o homem ainda não entrou dentro da lógica de Deus (como Pedro, como muitos de nós); o sexto dia é, no simbolismo da Escritura que sempre tem como referência o texto da criação, o dia em que existe o homem natural, feito por Deus em todo a sua grande riqueza e valor natural. Mas ao homem é oferecida a possibilidade de apontar, junto com toda a criação, para o sétimo dia, para o “repouso” da alma que procura encontrar aquele infinito que sente dentro de si. É, então, o “sétimo dia”, a proposta que Deus faz; proposta que não exclui, mas leva a cumprimento o desejo infinito do homem, projetando-o naquela dimensão que eleva o que de maravilhoso já existe por natureza: o projeta na divindade para a qual aponta o desejo do Criador. Deus nunca tira o que já possuímos, bom por si mesmo, apenas oferece a possibilidade de sublimas o que já existe de bom e, assim, receber como um dom o que nenhum homem com suas condições pode alcançar.

Neste “sétimo dia” «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João»; «somente eles» diz literalmente o texto. Trata-se, então de uma escolha precisa de Jesus; de algum modo Ele oferecia aos três algo que não ofereceu a todos os outros discípulos. Será possível encontrar uma motivação para esta escolha de Jesus? Creio que possamos descobrir certa analogia através da convicção expressa em Atos dos Apóstolos quanto a Moisés, o qual também subiu uma montanha, trazendo consigo três pessoas: Arão Nadab e Abiú (Cfr. Ex. 24,1); assim diz o trecho: «É este Moisés quem esteve na assembléia no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com os nossos pais; o qual recebeu palavras vivas para no-las transmitir» (At. 7,38). “Palavras vivas para serem transmitidas”; estamos no caminho certo! Sim, Pedro não poderia anunciar sozinho a sua profunda intuição; também os três não poderiam anunciar com autoridade, se este anúncio não passasse pelo crivo da participação, como um todo, ao mistério de Jesus. Antes da Transfiguração os três tinham “assistido” (com o olhar de quem está de “fora”) ao milagre da cura da filha de Jairo (Mc. 5,37) agora serão “envolvidos” por Deus -imagem simbólica da nuvem- mas ainda não estarão prontos para dizer “palavras vivas”; por isso Jesus lhes proibirá de falar antes de que tenham participado até o fim da história. Mas os três compreenderão Jesus muito mais profundamente algum tempo depois, no Getsêmani, quando também ficarão «somente eles» com Jesus (Mc. 14,33). “Palavras vivas” que o próprio Jesus continuará dizendo à humanidade (como um novo Moisés) por boca dos três, as «colunas da Igreja» (Gal. 2,9) –como os chamavam os primeiros cristãos. Suas palavras serão cheias de vida; não teorias ou sentimentalismos nem tampouco ideologias sobre Jesus. Será vida vivida até o fim.

Continua o texto: «os fez subir» (não: “os levou”, como se encontra em algumas traduções). Aparentemente o sentido pode ser quase semelhante, se não fosse que o verbo usado por Marcos significa contemporaneamente duas coisas: o ato de subir, isto é, um ato material, mas também o ato de oferecer, próprio do sacerdote que “sobe” ao altar para oferecer em nome do povo de Israel. Será tão difícil ver neste ato de Jesus a antecipação de sua oferta na cruz para a Ressurreição? Toda a narração do episódio está em função do mistério de morte e ressurreição, somente após o qual será possível entender o significado pleno da “oferta” que Jesus faz ao Pai. Será um forçar demais o texto se pudermos ver em Jesus uma semelhança com Abrão que oferece o filho, Jacó no monte Moriah? Eis então que se nos apresenta em Pedro, Tiago e João a revelação de como Jesus entende a sua comunidade, a sua Igreja, os seus “filhos”: uma oferta ao Pai, santificada pela presença da “nuvem” (símbolo da presença, do Espírito, de Deus). Eis que aparece assim a ação Trinitária da obra de salvação que Deus oferece ao mundo pelas «palavras vivas» dos três. È um ato de louvor ao Pai operado pela presença do Espírito numa comunidade conduzida “numa alta montanha” por Jesus.

Permito-me ainda apontar um último aspecto.

Era comum, na antiguidade, imaginar fenômenos chamados “metamorfoses”; a palavra (do verbo metamorfoomai) significa “mudar de aspecto”. É o verbo que o Evangelista usa e que nós traduzimos com: “foi transfigurado”. Durante a vida de Jesus a crença que pessoas pudessem mudar de aspecto e transformarem-se em árvores, animais, deuses etc. era muito difundida. Ovídio, um grande poeta Latino, entre o ano 2 e 8, publicava 15 livro de 256 fábulas com o título: “metamorfoses”. A motivação desta crença não é muito distante de outros refúgios que nós também usamos na nossa cultura. Tratava-se de uma maneira de expressar a insatisfação quanto ao sistema de vida, ao ambiente, às pessoas e refugiar-se num mundo diferente, acima e irreconhecível no mundo em que as pessoas viviam. Era como a expressão de um desejo inconsciente de não identificar-se com o mundo presente. Hoje temos outros tipos de manifestações, mas que se reconduzem igualmente ao mesmo ato de “fuga” da realidade. Pois bem, Pedro pregava o Evangelho em Roma, Marcos traduzia e anotava sua pregação que chegou assim até nós. É bem neste contexto em que a “transfiguração de Jesus” podia ser entendida como uma das muitas “metamorfoses” do poeta latino, que entendemos a profunda diferença entre o que é “fuga” e o que é “força e coragem” para se envolver, atitudes para as quais este episódio aponta. Assim sendo, Jesus pede para que os três nunca se esqueçam de que é lá, em Jerusalém, onde percorrerão junto com Ele o caminho da Paixão, que se encontrarão definitivamente com o mais íntimo do seu Senhor.

Por fim, gostaria de oferecer uma oração de Thomas Merton, que se inspirou muito à “montanha” do encontro com o Senhor.

Senhor Deus,
Não tenho a menor idéia de para onde estou indo,
Não enxergo o caminho à minha frente,
Não sei ao certo onde irá dar esse caminho.
Também não conheço verdadeiramente a mim mesmo,
E o fato de que penso que estou seguindo a Tua vontade
Não significa que realmente esteja seguindo a Tua vontade.
Mas acredito que o meu desejo de Te agradar
Realmente Te agrada.
E espero ter esse desejo em tudo o que fizer,
Espero nunca me afastar desse desejo.
Sei que, se assim o fizer,
Tu me guiarás pelo caminho correto
Embora eu possa nem saber que o estou trilhando.
Assim, confiarei sempre em Ti
Embora eu pareça estar perdido
E caminhando na sombra da morte.
E não temerei, porque Tu estás sempre comigo
E nunca deixarás que eu enfrente os perigos sozinho.

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