quinta-feira, 12 de março de 2009

3º Domingo da Quaresma (Pe Carlo B.)

Com certeza estamos diante de um dos fatos mais singulares e críticos da história de Jesus quanto à sua relação com o sistema religioso-político de Israel. É um episódio que, por sua amplidão, pode ser compreendido de muitos modos diferentes. Sem duvida a interpretação mais superficial é própria do leitor que simplesmente vê nisso um gesto de “impaciência” de Jesus ou, pior, vê um ato de raiva que demonstra a Sua instabilidade emocional. É obvio que esta leitura é própria de quem não conhece o Evangelho nem o mundo judaico. Se este fosse o sentido, não se vê porque os Evangelistas deveriam ter deixado escrito no Evangelho um texto denigratório em relação a Jesus. Logo, precisaremos percorrer outros caminhos para entrar na realidade que Jesus quis comunicar-nos e que os discípulos compreenderam (mesmo que algum tempo depois do ocorrido).
Ao contrário deste tipo de aproximações citadas, o fato foi muito bem entendido pelas pessoas envolvidas; ninguém viu isto como um ato de raiva ou revolta ou moralização simplória. Lê-se, no Evangelho, que nenhuma das autoridades chamou os guardas e os soldados do Templo para prender a Jesus; simplesmente perguntaram: «qual o sinal?». Quem sabe, usando esta mesma pergunta talvez possamos encontrar a porta do caminho que nos conduzirá para alguns aspectos do sentido profundo do episódio.
Procedamos cautelosamente e com respeito.
Não foi de escândalo nenhum o fato de Jesus ter entrelaçado tiras de couro e ter feito, com estas, algo «como que um chicote» (literalmente: “flagelo”). Jesus improvisou, não “preparou”; o que indica duas atitudes diferentes e a finalidade: não se trata de uma arma que agride, mas sim um instrumento simbólico. Ninguém se perguntou nem perguntou a Ele “por quê?”, mas simplesmente «qual o sinal?», fato que demonstra que todos sabiam o que isto significava. A questão era a abrangência do gesto, o seu alcance. Pois bem, o uso da linguagem simbólica era muito mais comum então do que agora; um símbolo é capaz de trazer à tona significados que as palavras nem sempre conseguem; com esta linguagem reiteradamente falavam os profetas (alguns gestos simbólicos podemos encontrá-los em Jer.13,1-11;19,1-5.1012;etc.). Jesus usou a mesma técnica de comunicação. O Messias esperado, aquele que iria instaurar o novo reino e promulgar a soberania de Jahwé era representado, pelos ensinamentos dos rabinos, tendo um “flagelo” nas mãos (o “flagelo” era “como um chicote”, não um chicote, feito de tiras de couro). Com este castigaria aqueles que eram tidos como pecadores e, por isso, estavam excluídos da comunidade dos homens piedosos os quais, freqüentavam o Templo, faziam orações públicas, sacrifícios etc. O “flagelo” indicava tanto chicote quanto também as “dores” do parto de um novo dia. Quando Jesus entrelaçou o “flagelo” todos entenderam que se tratava de um gesto simbólico: Jesus estava se declarando publicamente o Messias esperado e, com isto, indicava o início de novos tempos. Os Profetas vaticinavam que o Messias ter-se-ia manifestado no Templo, então os religiosos viram no gesto uma declaração religiosa de Jesus. Por outro lado os Zelotes (que no ano 6 haviam começado uma revolta contra Roma), interpretaram o gesto como o início de uma nova revolta, quista e abençoada por Deus. Para os líderes religiosos o início da era messianica coincidiria com a “purificação de Israel” tanto esperada; ou seja, quando Deus através do seu Messias castigaria os ímpios afastados. Mas, espantosamente, Jesus, invés que “flagelar” os pecadores afastados do Templo e da religiosidade, investiu contra aqueles que estavam no Templo, os “comerciantes”. É isto que surpreendeu a todos, pois eles estavam fazendo o que era seu direito e, em certo sentido, um serviço aos peregrinos que precisavam comprar animais e trocar suas moedas.
O gesto surtiu o efeito desejado, bem como Jesus gostava de fazer!
Percorramos mais algumas indicações do texto.
O Evangelista diz que «no Templo, encontrou os vendedores»; Jesus não encontrou pessoas que quisessem realizar a Páscoa de Deus, mas sim a “páscoa” dos Judeus, a festa dos “comerciantes”. Nunca no Antigo Testamento se encontra a expressão “páscoa dos Judeus”, mas sim: “páscoa do Senhor” isto porque é o Senhor que dá a festa. No entanto, a festa de Deus que liberta e salva o seu povo, mostrando assim a sua gratuidade no amor e na predileção não merecida, se transformara com o tempo na “festa dos judeus”, a mais importante fonte de renda de Jerusalém, o sistema econômico financeiro mais lucrativo do médio-oriente. Não vem o caso descrever aqui o volume das atividades e o giro de dinheiro ligado ao Templo; basta pensar que as licitações para as vendas de animais eram concorridas três semanas antes da Páscoa, vendidas ou cedidas em troca de favores; somente os cordeiros imolados passavam de 18.000, grande parte dos quais eram comprados num redil –no monte das oliveiras- de propriedade da família de Ananias, sumo Sacerdote. Era a “festa dos comerciantes” não dos homens de fé.
Um preceito do Deuteronômio diz assim: «Ninguém se apresentará diante do Senhor de mãos vazias» (Dt.16,16); mas este, que queria ser um princípio espiritual, se transformara bem cedo numa justificativa religiosa para outras finalidades bem menos religiosas: todos, a partir dos doze anos, eram obrigados a levar ao Templo parte de seus bens. Eis, então que se nos apresenta mais um significado do gesto de Jesus: não é preciso se apresentar diante de Deus com a atitude de “comerciante”, como alguém que barganha com Deus, contrata, mede, pesa. A Páscoa de Deus é pura gratuidade, não comércio. É Deus que vai ao homem para liberta-lo do lugar onde caiu; Deus não se deixa vincular às pretensões de quem se acha credor porque fez tudo o que era preciso fazer... Deus é pura gratuidade: não importa se apresentar de “mãos vazias”; talvez isto seja até melhor do que se apresentar com os sacrifícios feitos como manda a religiosidade.
Lendo o mesmo episódio narrado pelos outros Evangelistas, notamos um pequeno detalhe: Jesus “expulsou todos”, tanto os que vendiam quanto os que “compravam”. Aqui, então superamos o ensinamento moralizante quanto à atividade econômica ligada ao Templo. Trata-se de algo mais; temos mais um ensinamento de Jesus: se por um lado existem pessoas que utilizam as coisas de Deus por finalidades próprias, por outro lado é pecador também quem quer “comprar” Deus com seus sacrifícios, com suas obras. São estas as atitudes contra as quais o Messias, inesperadamente, se ergue, e não contra as pessoas que, por inúmeras motivações, “não estão no Templo” - como dizia a teologia clássica dos rabinos. A estes, o Messias não mostra o seu flagelo, mas sim o mostra a quem compra e vende a relação com o Pai. O novo tempo será inaugurado por outro estilo de vida espiritual, por outra relação com Deus.
Qual, então a nova proposta de Jesus?
Lendo o Evangelho percebemos algo estranho: Jesus se dirigiu com particular veemência contra os vendedores de pombas: «E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”», como se estes fossem os mais perigosos mercantes. Qual deve ter sido a motivação deste proceder de Jesus?
A pomba era usada pelas pessoas da classe médio-baixa, como oferta de expiação do pecado (cfr. Lev. 5,7ss.). A idéia que está por detrás da palavra “expiação” é: voltar a ser “pio”, isto é, em condição correta diante de Deus. Isto era possível uma vez que a pessoa “devolvesse” a Deus (com um símbolo como a pomba) o que havia “usurpado” desobedecendo à Sua lei. Como é possível que a relação com Deus se resuma nisso? Isto é comércio! Mas, então, qual é o culto que agrada a Deus?
Em nosso auxilio vem o episódio do Batismo de Jesus. Quando Jesus se dispõe a seguir sem limites, por amor ao Pai, o projeto de redenção do homem, o Pai envia o seu Espírito, a sua força de comunhão constante, o seu “respiro de vida”; Lhe fala e O reconhece como “Filho amado”. Símbolo de todo este complexo momento é uma pomba. Uma pomba de reciprocidade infinita, sem medida, sem “se”, sem “porém”, sem “até que...”. Esta é a pomba agradável a Deus que realmente coloca o homem na condição correta com Deus, na relação que o Espírito gera. Não uma pombinha comprada e cedida a Deus. Ele não se contenta com pouco, deseja tudo para poder dar tudo! É esta relação que realmente tira o pecado do homem; aniquila progressivamente, passo a passo, as distâncias criadas pelo medo, egoísmo, auto-suficiência... A verdadeira pomba que une o homem a Deus é a atitude de disposição sem condições, é ter o mesmo Espírito de Jesus, de amor sem limites.
Eis então a nova proposta de Jesus: «Tenham coragem de destruir este Templo», ou seja, esta maneira de entender a relação com Deus; «E eu construirei um novo Templo», ou seja, um novo lugar onde todos poderão se encontrar com Deus do modo como Ele se deixa encontrar. Jesus (como entenderão mais tarde os cristãos principalmente por obra da reflexão Paulina) estava falando do seu “corpo”, da Igreja, comunidade onde Ele viveria até o fim dos tempos para ser Sacerdote verdadeiro que une o Pai aos homens e, assim fazendo os purifica do pecado com aquela força que brota em nós quando nos sentimos amados de amor gratuito.
«Vocês são o Templo de Deus!» dirá São Paulo aos cristãos de Corinto (1Cor. 3). A comunidade de fé, mais que uma sociedade, é o mistério da presença de Jesus no meio da humanidade, lugar de encontro e de perdão, onde se aprende a não comerciar com Deus, mas a entregar-se sem pôr condições.

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