sexta-feira, 29 de maio de 2009

Domingo de Pentecostes (Pe Carlo)

O caminho litúrgico intenso que trilhamos neste Tempo Pascal, nos ajudou a compreender que a Páscoa não é um fato ligado a um momento mas que é um evento, cujas conseqüências se prolongam ao longo da história. Páscoa é uma realidade nova implantada no mundo dos homens e que age a partir de seu interior, modificando relações, perspectivas, valores e, até a própria natureza. A festa de hoje lança uma ponte entre o evento pascal e a vida da comunidade cristã, para que possamos entender melhor o seu significado, sua identidade e função.
Esta festa encerra o tempo de meditação sobre o evento Pascal para dar início à caminhada quotidiana. Passos lentos e imperceptíveis que a comunidade cristã dá na sua peregrinação no mundo dos homens a fim de que possa ser dada a todos a oportunidade de participar do dom que Deus nos ofereceu em Cristo.
Alguns gostam de indicar a festa de hoje como a festa da Igreja, outros do Espírito Santo, outros vêem hoje a festa da “fundação”, do começo da Igreja... Seja o que for, com certeza indica o início da nova, última e definitiva maneira de Cristo operar junto com os homens na história humana. Trata-se de uma belíssima festa, cujo valor pode ser compreendido melhor uma vez depurada de algumas formas espalhafatosas com as quais, às vezes, se pretende mais representar sensações do que transmitir conteúdos de fé. Algumas informações sobre a origem da festa, talvez podem ajudar-nos a sentir a “alegria” que sempre é associada a esta festa. O primeiro passo é o de esquivar-nos o mais possível de representações entusiásticas, que são mais próximas do mundo pagão do que cristão. Desde sempre, de fato, a relação entre os deuses e os homens, foi representada por indivíduos que se apresentavam como invadidos, pelo espírito dos deuses. Estes “sacerdotes”, través de métodos estáticos personificavam o limite entre a divindade e a humanidade. Ritualmente, neles entravam em conflito a dimensão divina e humana; esta, não podendo suportar a presença de algo tão superior como o espírito dos deuses, respondia com gemidos, gritos, gestos estranhos, cortes na própria carne, mudança de voz etc. Manifestações como estas, se encontram também entre as primeiras formas de profetismo em Israel, mas bem cedo são consideradas como manifestações falsas que não indicam a presença do Espírito de Jahvé; veja-se, por exemplo, a diferença entre Elias e os profetas de Baal (1Rs. 18,22.28). É impróprio e não conforme a nossa fé identificar o Espírito com fenômenos como tais.
Pentecostes significa “festa do qüinquagésimo dia”. Sua origem é muito antiga, trata-se de uma festa agrícola atestada desde o tempo em que Israel se tornou um povo sedentário; isto é quase 1200 anos antes de Jesus. Era de um momento de grande alegria que devia ser celebrado de modo tal que ninguém fosse excluído da alegria comum. Estas palavras do Deuteronômio prescrevem que a festa e a alegria sejam proporcionadas a todos: «Alegrar-te-ás perante o Senhor teu Deus, tu, e o teu filho, e a tua filha, e o teu servo, e a tua serva, e o levita que está dentro da tua cidade, e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva que estão no meio de ti, no lugar que o Senhor teu Deus, escolher para ali fazer habitar o seu nome» (Dt. 16,11; note-se que a repetição “e”, “e”... é tipicamente manifestação de uma fórmula gravada na memória litúrgica). A alegria comum, logo, era o centro desta festa, era a manifestação exterior de um significado mais profundo que tentaremos descobrir. Esta mesma alegria a encontramos no evento narrado em Atos dos Apóstolos; em ambos os casos, trata-se de uma alegria comunitária, não particular. A festa, logo, não é um sentimentalismo privado mas resultado de algo que envolve a comunidade como uma só coisa; ali há espaço e direito também para os que estão à margem da vida comum: «servo, estrangeiro, órfão, viúva». Como uma só coisa; é assim que Deus via e vê o seu povo, tanto o antigo Israel, libertado do Egito, quanto a sua comunidade cristã, na qual «escolheu ali fazer habitar o seu nome», isto é, o seu Filho.
De onde se originava a alegria tão celebrada? Creio que possamos identificar pelo menos três fatores principais. Fazendo uma transposição temporal, não será difícil para cada um encontrar uma profunda analogia entre a festa em sua origem, e o evento que celebramos hoje.
Quanto ao primeiro elemento: o símbolo principal da festa era representado pelo “primeiro feixe de trigo” da colheita do ano. Este era apresentado a Jahvé como oferta. O feixe de trigo oferecido representava a gratidão pela colheita. Para todo homem da antiguidade o alimento é um dom de Deus, hoje nós esquecemos muito esta dimensão porque na maioria dos casos não temos mais uma relação viva com o nosso alimento, simplesmente o encontramos no supermercado já bem embalado. Para os antigos, considerar e receber o alimento como dom recordava a dimensão de gratuidade na qual a pessoa deve viver a sua existência. Para um hebreu existia um significado a mais: poder colher o próprio trigo, significava não estar mais obrigado a trabalhar como servo dos Egípcios para garantir o direito à sobrevivência. Naquele feixe estava presente o símbolo da liberdade que Deus havia proporcionado gratuitamente ao seu povo.
Com a primeira colheita de trigo cada família fazia um pão que era oferecido a Deus em agradecimento; este pão era dado também aos pobres. Seguindo esta linha, não é difícil descobrir a beleza deste momento. Muitas vezes, em suas parábolas, Jesus indicou o mundo como o “campo de Deus”, no qual Ele, o Senhor, semeia a sua palavra, a qual dará frutos, mesmo que uma parte se perca e outra seja sufocada. Jesus havia semeado a sua palavra e algumas pessoas, com todos os seus limites e erros, haviam permitido que germinasse em suas vidas. Era a primeira colheita de Jesus. Aquele grupo de fiéis era o primeiro feixe de trigo nascido de uma semente que morreu, o primeiro “pão” confeccionado com aquilo que Jesus havia semeado. Assim, analogamente a o que acontece quando celebramos a Eucaristia, o Pai acolheu aquele fruto, da morte do grão de trigo, e, como pelo Espírito ainda hoje modifica o pão em corpo de Cristo, do mesmo modo fez daquele grupo mais do que um grupo de pessoas, fez deles o Corpo de Cristo, para usar a linguagem de São Paulo. O Corpo de Cristo presente no mundo até o fim dos tempos. Nascia a Igreja. Cheia de dificuldades, problemas, pecados, mas cheia de perdão, de força de amar, portadora de um tesouro maior do que ela mesma: o próprio Cristo.
O segundo elemento é ligado ao primeiro. Sendo Israel povo nômade, ele via naquela colheita a realização da promessa feita. Colher uma safra de trigo significava estabilidade, realização de uma promessa como antecipação de uma outra. O hebreu sabia que a promessa de uma “terra” nova oferecida imerecidamente por Jahvé, era o penhor de uma outra promessa que se estenderia a toda a humanidade, às «ilhas mais distantes» (cfr. Sof. 2,11). Era a promessa de uma nova “terra”, um novo “mundo” onde reinaria a paz, a justiça, a fraternidade. Um mundo onde Jahvé é o Senhor, reina. Paralelamente, a comunidade cristã via realizada a promessa do novo mundo, instaurado pela vinda de Jesus e sua Páscoa; uma promessa com sabor de algo definitivo, irrevogável, que superava o tempo e o espaço uma vez que o Senhor ressuscitado apareceu vivo e concretizou a promessa de permanecer «sempre» com eles. Não só, sabiam que um novo “mundo” era de fato possível. E isto o experimentavam olhando no interior da própria comunidade, a qual, desde o início, se caracterizava como comunidade de perdão recíproco. Não podemos desconsiderar, por exemplo, que a presença de Maria na comunidade cristã, ao lado daqueles que abandonaram a si mesmo o Filho Dela, caracteriza a comunidade como comunidade de perdão, de acolhida. Seu olhar, privo de crítica, dizia que de fato um mundo novo estava ali. A leitura do Evangelho de hoje também associa imediatamente o “espírito” dado ao perdão recíproco. É, logo, uma comunidade que se rege sobre princípios novos, porque ao centro dela está a presença de Deus, não as opiniões relativistas, ou restritos critérios de “justo e errado”. Aquela comunidade era o início de um novo “mundo” feito de relações mais humanas.
Quanto ao terceiro, o significado decorre da data de sua celebração no primeiro dia depois de sete semanas. Repetir anualmente o ciclo de sete semanas tinha uma função educativa que relembrava a todo hebreu o grande jubileu previsto pela Lei; jubileu que recorria a cada 50 anos. O jubileu era a festa que, recordando a liberdade, se abria à esperança de que os homens fossem mais équo, justos, conformes com o projeto de Deus. A Lei previa uma série de práticas que serviam para esta finalidade, entre elas a libertação de escravos, redistribuição de terras, perdão de dívidas, etc. (o que de fato raramente ocorreu, embora previsto). Era uma esperança sempre aberta. Todavia, um mundo mais humano só é possível quando o homem vive a comunhão com Deus; é isto que no “sétimo” dia da criação exige o livro de Gênese. A criação como Deus a quer, somente é possível quando os homens são capazes de estabelecer as suas relações recíprocas apontando o olhar para Deus. Do contrário somente haverá conflitos de opiniões, razões e pontos de vista.
Na época de Jesus, tanto nas comunidades de Qumrã, quanto no ensinamento comum do judaísmo que se inspirava no “Livro dos Jubileus”, a Pentecostes era tida como festa que lembrava o instrumento privilegiado –no entender dos hebreus- que Deus havia dado para orientar o olhar do homem em sua direção. Era a Lei, ou melhor, os cinco rolos da Lei como cinqüenta eram os dias decorridos desde a Páscoa judaica. Era a festa da renovada aliança estipulada pela Lei do Sinai.
A comunidade dos discípulos, porém, havia conhecido uma outra “Lei”, não escrita em livros, uma lei que brotava do coração de Jesus quando olhava nos olhos dos necessitados, dos “perdidos”, dos sofredores. Era uma Lei nova não feita de regras mas de compaixão, de esperança dada, de amparo oferecido até às últimas conseqüências. Mas como viver esta nova lei, esta nova aliança baseada “no sangue”, isto é, na vida dada completamente a Deus e aos outros? É muito difícil, a não ser que intervenha algo, uma força maior que a Lei, uma força que nasce do coração, da decisão fundamental de superar a próprio bem-estar, a própria comodidade para se projetar fora de si mesmo. E isto a lei, a regra, a obrigação não têm poder de dar. Existe somente um fator capaz de conduzir infinitamente o homem fora de se mesmo: a consagração plena a Deus. Consagração que é o ato com o qual o todo do homem deseja fundir-se com o todo de Deus e ao qual Deus responde dando um desejo infinito de Infinito: o Seu Espírito.
Sim, o jubileu, o qüinquagésimo ano, como o sétimo dia, todos indicavam a consagração exclusiva a Deus: Ele em primeiro lugar. Pertencer ao Pai fora a força de Jesus, o dom que a comunidade recebeu foi o de sentir o mesmo Espírito que eternamente rege esta relação de pertença entre o Pai e o Filho. É o Espírito que dá a força, é capaz de conduzir cada homem e, neste, a humanidade inteira, para um mundo novo onde as leis servem, sim, mas não se impõem na novidade das relações que o amor gera.
Naquele dia, naquela festa das primícias, da renovada aliança, Deus Pai acolheu a primícia de Jesus; aceitou como oferta agradável aquele feixe de homens assim como aceitava a consagração dos primogênitos de Israel. Acolheu e santificou, envolveu com o mesmo Espírito aquela pequena antecipação de um mundo que inexoravelmente vai para o triunfo do amor. Aquela comunidade de fé, envolvida pelo Espírito foi a resposta do Pai ao amor do Filho. É isto que significa ser e viver o mistério da Igreja.

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