sexta-feira, 18 de maio de 2007

A solenidade da Ascensão (Pe Carlo Battistone)

A solenidade da Ascensão, que hoje celebramos, coloca-se como momento central entre a Ressurreição de Jesus e o início do caminho da Igreja. O fato é mencionado somente por um dos quatro Evangelistas, Lucas e, ainda mais, é narrado em duas maneiras diferentes em seu Evangelho e no livro de Atos dos Apóstolos. Na primeira das duas narrações a Ascensão é apresentada no mesmo dia da Ressurreição, na segunda é posta no findar dos quarenta dias que seguem a Ressurreição. Esta dúplice colocação por parte do mesmo autor obviamente nos aponta para o caminho correto de leitura. Não procuraremos simplesmente a descrição de um fato como numa crônica mas seu sentido teológico; sentido este que media a vida de Jesus de Nazaré e a vida do Senhor Ressuscitado, o qual age definitivamente no mundo dos homens superando as barreiras e os limites culturais do mundo Palestinense. Trata-se também do marco que delimita a experiência de salvação em nível pessoal –como fizeram os Apóstolos na convivência com Jesus- e a abertura à missão universal. Nos Apóstolos que presenciaram o fato, poderemos ver a nós mesmos naquele momento que vai entre o encontro pessoal com Jesus e a necessidade de projetar o que vivemos além do nosso mundo privado. Caberá à nossa reflexão contemplar mais o significado da Ascensão do que se admirar com a unicidade do evento e sua espectacularidade.
O texto de hoje é precedido por algumas indicações importantes que o Evangelista dá com estas palavras: «... Então abriu suas mentes para compreenderem as Escrituras dizendo:“Assim está escrito..”». Ao deixar os Apóstolos, a preocupação de Jesus é que eles compreendam “como” interpretar as Escrituras, com que ótica intuir o sentido profundo de todo história passada. Antes de entrar na glória Jesus entrega, consigna aos Doze a chave de leitura de toda a história a qual aponta diretamente e imediatamente a Cristo, passado e futuro. É essencial para Jesus que as Escrituras sejam usadas e interpretadas de modo que corresponda à Verdade. Um uso das Escrituras sem critério é um abuso delas, é uma manipulação para finalidades às vezes escusas; isto é bem possível, pois estas se prestam muito bem a qualquer tipo de leitura; afinal, o demônio não havia feito a mesma coisa quando das tentações no deserto? Não havia ele usado as Escrituras para suas particulares finalidades? Antes de ser elevado à glória, Jesus consignou à sua comunidade a «inteligência das Escrituras» uma inteligência que não se origina na arbitrária leitura mas na conformidade à vida que Jesus viveu e, especialmente, no evento da Páscoa como fato que dá sentido ao passado e ao futuro. Note-se a ligação direta que Jesus fez entre os profetas e os Apóstolos; de fato com a expressão «começando por Jerusalém», lugar de onde os Apóstolos começariam sua jornada, o Senhor dava continuidade ao oráculo de Isaías que anunciava a realização de uma nova era com estas palavras: «De Sião sairá a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor» (Is.2,3). Os profetas anteciparam o Salvador, os Apóstolos levarão a presença do Salvador a todos os povos.
Desde sempre a Igreja sentiu-se responsável por esta herança que o Senhor lhe havia entregado. Sabemos como desde o início a atividade principal dos Apóstolos foi aquela de anunciar a pessoa de Cristo e acompanhar este anúncio com a leitura e interpretação das Escrituras, tendo sempre o Senhor como ponto de referência, sua vida, seus atos seus sentimentos. Assim, por exemplo, Filipe com o funcionário de Candace (At. 8,26-40), Paulo aos Judeus de Antioquia (At. 13,16) e muitos outros. A leitura e interpretação da Escritura são tidas como coisas “sagradas”, em todo o livro de Atos dos Apóstolos; a Epístola de S.Pedro também se coloca na mesma linha: «Primeiramente saibam isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretação privada» (2Pd.1,21); e assim também o Concílio Vaticano II: “A Escritura deve ser lida e interpretada no mesmo espírito com a qual foi escrita. A maneira de interpretar a Escritura, em última instância está sujeita ao juízo da Igreja, a qual exerce o divino ministério de guardar e interpretar a Palavra” (DV 12). O amor à Escritura é amor à herança de Jesus.
Continuando na leitura percebemos como Jesus indicou ao Apóstolos a maneira com a qual a Salvação será levada ao conhecimento de todos os povos. Ele, de antemão, exclui qualquer atitude que demonstre proselitismo, propaganda, desejo de expandir uma ideologia nova. A ação da comunidade de fé, contrariamente a um proselitismo barato, é ligada estritamente ao testemunho, nada mais do que isto. Não são as obras, não são os instrumentos que anunciam, mas o testemunho o qual está diretamente ligado à fidelidade a tudo quanto os apóstolos “viram e ouviram”. Poderíamos nos perguntar sobre o quê eles dariam testemunho, segundo este trecho do Evangelho. Pois bem, evidentemente “testemunhar”, aqui não tem sentido de “relatar” fatos, narrar acontecimentos etc. Jesus não pediu que eles “testemunhassem”; Ele afirmou o que já estava presente nos Apóstolos: «disto sois testemunhas». Ou seja: suas vidas mostrariam o que significa “estar com Jesus”, permanecer com Ele mesmo quando tudo parece perdido, quando acontece a rejeição e tudo o que o «Cristo teve que padecer», quando se verificou o absurdo da morte e a inimaginável Ressurreição. Os Apóstolos seriam testemunhas para o mundo da fidelidade de Deus à promessa feita ao homem o qual, ao constatar quanto e “como” Ele nos ama, poderá sempre se abrir a este amor e acolher a proposta de abandonar o caminho do pecado isto é, o caminho que busca a felicidade e a realização de modo auto-suficiente. Aos seus, Jesus entregava a missão de dizer com a própria vida o que significa “conversão”. De fato foi a conversão o valor que eles tiveram que aprender convivendo, dia após dia, passo após passo, com o Nazareno. O amor ao Senhor os havia conduzido ao longo daquele caminho que, pela humildade, faz com que as pessoas sejam capazes de mudar suas posições particulares, seus pontos de vista privados e fazer “convergir” toda a sua vida na vida do Senhor. Disto também eles seriam testemunhas, da conversão que acontece quando se têm familiaridade com Jesus, quando se vive “em seu nome”! Era esta a missão que Jesus entregava aos seus antes de ser arrebatado de sua presença. Ora, uma missão tão grande não pode ser alcançada com meios humanos, como acontece com todas as coisas de Deus. Sendo assim, Jesus prometeu o Espírito de santidade o qual manteria sempre viva, nos corações da Igreja, a percepção forte da presença do Senhor em sua comunidade, mesmo experimentando uma aparente ausência já que, agora, o Senhor precisa assumir o lugar que Lhe cabe, ao lado do Pai.
O Evangelista, nos oferece nos últimos versículos como que um ícone gravado para sempre na comunidade de fé; uma imagem mais explicita da maneira com a qual o Senhor estaria sempre presente em sua comunidade.
À primeira vista a Ascensão de Jesus se apresenta como uma “subida ao céu”, o que não deixa de ser correto, contanto que “céu” não seja entendido como lugar –seja que lhe se dê figura física ou vagamente etérea-. Céu, na Escritura, é a maneira de indicar a condição permanente em que Jahvé se encontra; os “céus” são imutáveis, a terra muda; os “céus” são inalcançáveis, a terra pode ser medida, pesada... e assim por diante. “Céu” é a condição transcendente e permanente na qual Jesus entra superando todas as barreiras do tempo e do espaço. Em auxilio de uma leitura que exclui a interpretação de “departida”, existem dois fatores de relevo. O primeiro é de origem lingüística: o verbo que freqüentemente é traduzido com «se afastou deles» (do grego disthmi) significa “estar em lugar diferente”, sem com isto indicar a atitude de desligamento, afastamento. O sentido é claro: Jesus continua estando na sua comunidade mas de modo diferente, de modo mais condizente com o “céu”. O segundo elemento é dado pela reação dos discípulos; se a Ascensão fosse interpretada e sentida por eles como uma departida (como o foi, por exemplo no Evangelho de João quando Jesus fez o seu “discurso de adeus”) obviamente não se explicaria a reação descrita como «grande alegria» que os levava a “bendizer a Deus”. Não, a Ascensão de Jesus não foi entendida como um afastamento, mas ao contrário! A alegria foi gerada pela constatação de que Jesus permaneceria sempre, estavelmente, à maneira eterna de Deus, dentro da sua comunidade.
A imagem usada para descrever “como” o Senhor sempre está presente na sua comunidade é retomada da tradição bíblico-liturgica; Jesus é descrito na posição própria do sacerdote, comparada à posição do sumo sacerdote Simão, filho de Onias, em ato de abençoar Israel de braços abertos: «Então ele levantava as mãos sobre toda a assembléia de Israel para dar com seus lábios a benção do Altíssimo» (Ecli. 50,20). Aqui, neste trecho do Eclesiástico, a palavra “assembléia” corresponde à palavra igreja, comunidade reunida em nome do Senhor. Eis então o motivo da grande alegria, Jesus não se separa, continua abençoando e exercendo o seu ministério de Sacerdote Eterno, de mediação continua entre o Pai e a humanidade inteira a qual alcançará esta benção através da vida testemunhada dos Apóstolos.
Creio que esta ligação tão forte nos questione continuamente; o Senhor quer agir através da sua comunidade, através dos seus discípulos, através de quantos ainda hoje se dispõem a deixar-se envolver num projeto maior do que eles mesmos. O Ressuscitado quer continuar agindo em favor dos homens que precisam se encontrar com o Pai para serem felizes, santos. A Assunção de Jesus nos estimula a contemplar um “céu” que está tão entre nós, a ponto que sequer podemos percebe-lo, como nos acontece ao ver um quadro muito perto dos nossos olhos. Esta Solenidade nos estimula a olhar e refletir sobre a maneira de viver a presença do Ressuscitado entre nós e mais, nos questiona quanto ao espaço que deixamos ao Senhor para que Ele possa continuar exercendo o seu sacerdócio, a sua mediação salvifica em favor de tantas pessoas que ainda não conhecem o significado de sentirem-se amadas por Deus.

Nenhum comentário: