sábado, 7 de julho de 2007

XIV Domingo Comum (Pe Carlo)
Alguns chamaram este trecho de Lucas “manual para missionários” e, na verdade, poderia ter sido esta a regra que norteava os autênticos evangelizadores na Igreja primitiva. Sabemos muito bem quanto foi difícil para São Paulo opor-se e resistir a uma miríade de falsos missionários que, nas comunidades, afiguravam-se como portadores do verdadeiro Evangelho. Em muitos casos estes personagens apresentavam-se com a pretensa de “atualizar” o Evangelho, e ofereciam uma série de sofisticações que deveriam, em tese, aprofundar o Evangelho e aplicá-lo às várias situações histórico-culturais. Deste modo, a mensagem simples e profunda da palavra de Jesus era colocada em segundo plano respeito às “atualizações” da mesma Palavra. É como se a forma se tornasse mais importante que o conteúdo. Trata-se de uma grave e freqüente armadilha que ainda hoje desrama toda vez que perdemos o ponto de referência e o núcleo integral da Palavra que Jesus deixou. Quando isto acontece, outras coisas prevalecem sobre o singelo anúncio: ritos, práticas, costumes, sensações, misticismos, regras e assim por diante.
Toca-nos o sentimento de aflição misturado a uma profunda emoção com o qual Paulo vive o drama daquelas comunidades que corriam o risco de serem desviadas por causa de pessoas que, bem no fundo, anunciavam a si mesmas: «Ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja renegado. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja renegado. Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo.» (Gal. 1,8-10). Com angustia e ironia, Paulo chama de “superapóstolos” tais personagens que, bem no fundo, pregavam a si mesmos (Cfr. 2Cor. 10,12), e a eles responde: «Nós não pregamos a nós mesmos, mas Cristo Jesus, Senhor» (2Cor. 4,5).
Servir a Cristo ou servir a si mesmos? Qual o limite entre as duas coisas? Até onde a pregação do Evangelho é “livre” de outros interesses pessoais? Quando nossas palavras cessam de manifestar o conteúdo que Jesus deixou em herança e quando começam a manifestar a nossa, privada, visão do mundo?

Duas palavras abrem o nosso trecho do Evangelho: «discípulos» e «enviou». Diríamos nós, “discípulos e missionários”. Estas duas palavras dão o tom de leitura para todo o resto do trecho o qual, detalhadamente, indicará uma a uma as características própria que fornecem um cuidadoso ponto de referência para um bom exame de consciência, que todos deveríamos fazer cada vez que nos colocamos em relação ao anúncio da Palavra. Vejamos de percorrer o texto com um pouco de cuidado.

Toca a nossa atenção o uso do verbo “designar”. Jesus «designou» discípulos; o que é diferente do verbo “chamar”, este segundo é usado para os Apóstolos (em Mc. 3, quando da constituição dos “Doze”, o Evangelista usa o verbo epoihsen que significa “fazer deles” e não, como alguns traduzem: “designou”). Jesus «designou» discípulos; trata-se, então de pessoas que têm uma relação direta com Jesus -pois foi Ele quem os “designou”- mas não igual à dos Apóstolos. O verbo “designar” é usado por Lucas em ocasião da substituição de Judas Iscariotes por Matias (At.1,24); ali também, quem indicou o substituto é o Senhor, Ressuscitado e vivo na comunidade de fé. Matias, então não é “chamado”, mas sim “designado”. Pois bem, o verbo serve para indicar exatamente qual é a relação com a qual estes discípulos se colocam com Jesus. O verbo (anadeiknumi) indica que alguém é deputado a cumprir uma missão, uma missão onde tudo está já pronto; à pessoa indicada cabe levar a termo -cumprir- aquilo que outro dispôs com antecedência. Em suma: colher os frutos. Percebe-se imediatamente a diferença entre “missionariedade” e “proselitismo”. A primeira é um “colher os frutos” daquilo que Jesus opera ao ser anunciado, o segundo é um ato de recrutar pessoas instigando seus sentimentos. A primeira é um mandato de Jesus, o segundo é cobiça humana. As palavras que seguem em nosso texto reforçam esta visão já que o Senhor recorda que a colheita é do seu Dono: «rogai dono da messe par que envie mais operários para a sua colheita». O próprio anuncio de Jesus gera seu resultado, assim os discípulos são contemporaneamente designados para lançar a Palavra e colher frutos. O profeta Amós vê nesta contemporaneidade um sinal próprio da ação de Deus que opera livremente no homem que O acolhe. Com estas palavras: «...ao que lavra segue logo o que ceifa» (Am. 9,13) o Profeta sugere que a ação vivificadora de Deus é superabundante e tão eficaz a ponto de que até o tempo que naturalmente precisaria para o amadurecimento da colheita é aniquilado.

Anunciar Jesus com autenticidade provoca uma resposta imediata porque é a força do próprio anuncio que responde às exigências mais profundas da pessoa humana. É o Senhor que, na pessoa do discípulo, vai ao encontro dos mais profundos dramas da pessoa humana.
Ser designado para anunciar a Jesus é um dom. Dom que nasce do coração de Jesus. É um partilhar a sua felicidade de quem encontra em Jesus o que estava procurando. Ser discípulo designado para a missão é colher humildemente o que outro fez e semear para outro colher. Nunca querer semear e pretender colher por si! Com profunda e experiente espiritualidade Paulo recorda a qualquer homem da Palavra a humildade que deve acompanhar o sentido autêntico de missão: «Nem aquele que semeia, nem aquele que rega é alguma coisa, mas é Deus quem faz crescer» (1Cor. 3,7).
A leitura do trecho nos sugere ainda algumas perguntas; como e o quê anunciar?

É sugestivo o fato de que o Autor, que é o mesmo de Atos dos Apóstolos, neste último escrito associe a palavra “discípulo” à expressão «caminho do Senhor» (At. 18,25). Ora, com isto era costume indicar todo o processo pelo qual o homem, inserido numa profunda comunhão com Cristo através de uma comunidade de fé onde o Senhor está vivo e age, é progressivamente associado ao próprio Senhor, tornando-se ele mesmo uma «criatura nova» à imagem do Senhor. Pois bem, o discípulo é, deste modo, aquele que percorre por primeiro o “caminho do Senhor”, que o antecipa em sua vida para que possa ser oferecido a outras pessoas com credibilidade e autenticidade. Missionário e discípulo são, então, dois conceitos profundamente associados por uma única, profunda, transbordante experiência de Cristo a qual se transmite por si própria uma vez que o discípulo a traz sempre consigo de modo a se fundir com seu próprio ser. Nenhum anúncio pode se limitar em transmitir palavras, explicar conceitos –mesmo que da melhor maneira possível-; não pode sequer embasar-se sobre emoções transitórias ou incitamento psicológico. É um transmitir com credibilidade aquilo que vivifica a alma do discípulo. Não é um esforço para convencer alguém pois, de fato, ninguém de nós possui o poder de modificar o coração de outra pessoa; um esforço é sempre um esforço, que parte de nós mesmos. Ser discípulo e missionário é permitir um irradiar-se da pessoa de Jesus através da nossa pessoa à maneira que Paulo descrevia aos cristãos: «Não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim!» (Gal. 2,20). É um iluminar com a luz que brilha pela alegria daquele que fez do Senhor o centro de sua vida.

A este ponto, é fácil entender também as características próprias do anuncio, descritas muito detalhadamente e com um rico significado quanto a cada uma (o que, agora, não tem como parar para considerar). Em todas elas evidencia-se um mesmo principio: a sobriedade, a essencialidade. É um característica essencial para poder reconhecer o verdadeiro anuncio distinguindo-o de outros –mesquinhos- interesses aos quais este pode ser associado. Quando há essencialidade, significa que o coração do discípulo-missionário já possui o seu tesouro, não precisa de aprovação pública ou reconhecimento, não precisa de seguranças que lhe provenham de qualquer fonte. Basta-lhe aquilo que já possui dentro. E este tesouro é tão grande que transborda e se espalha, assim como a luz do Sol que alcança cada canto recôndito, por força própria, sem invadir, com a delicadeza própria do nosso Deus.

Pe. Carlo

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