sexta-feira, 10 de agosto de 2007

19° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

«Não tenhais medo», palavras tão simples e fortes que evocam paz, até num coração ferido pelas vicissitudes da vida; palavras que mantêm vivo o calor firme da mão da mãe que segura o seu filho que dá os primeiros passos. Palavras que ficam impressas em nosso inconsciente e que precisamos ouvir. Sim, todos sentimos a necessidade que alguém nos diga: “não tenha medo”; até aquele que nunca abaixou o olhar diante de alguém, aquele pelo qual quase tudo é possível, este também deve curvar-se ao medo. Palavras que nos recordam que não estamos sozinhos e que têm o poder de nos re-introduzir na solidariedade, da qual não confiamos mais quando o medo mostra o seu poder. Medos exteriores e medos interiores aprisionam aquilo que no homem é destinado ao infinito, prendem a pessoa dentro de si mesma; medo de opiniões, medo de se deixar conhecer, medo de não poder, medo de olhar para a própria limitação, para a finitude do corpo, do tempo... O medo é a razão da ganância que gera aquele desejo desenfreado de reconhecimento, de prestígio, de colocação; é a fonte da cobiça e da inveja que corroem progressivamente a paz. A leitura do domingo passado nos mostrou alguns aspectos desta doença que aflige a pessoa. Ao contrário, as palavras com as quais se abre o nosso trecho são o sintoma de um homem que se re-coloca na sua correta posição, tanto em relação à solidariedade humana quanto em relação a Deus. Esta correta relação, na linguagem bíblica é chamada “piedade”; o homem “pio” (pius, em latim) é aquele que está consciente de quem ele é, reconhece e vive a correta posição com os outros e com Deus. O homem “pio” é aquele que se deixa dizer: «Não tenha medo»; não se envergonha de que alguém tenha percebido o seu medo e lhe recorde que não está sozinho no mundo. O homem pio sabe que é «pequeno» e por isto aceita o que é.
A leitura dos Evangelhos é manifestamente expressiva de quanto Jesus se sentia livre em dizer estas palavras aos seus, e somente aos seus; principalmente nos momentos mais difíceis, nos momentos em que o projeto de Deus parecia tão estranho e incompreensível. «Não tenha medo», são palavras que aceitamos de quem nos ama e de quem nos sentimos amados; por isto Jesus se sentia livre em dize-lo ao seu «pequeno rebanho» que, embora não entendendo muito à respeito da experiência que Jesus lhes oferecia, todavia sentiam-se amados indiscutivelmente. Quando não houver uma relação anterior e íntima, estas palavras são inúteis, insignificantes, porque na verdade não comunicam aquele amor que, único, pode nos dar a força de superar o que é maior de nós mesmos. Poder dizer a alguém: «Não tenha medo» é sinal de real amizade, de comparticipação; é algo que alcança a mais profunda solidariedade humana, pois todos somos acomunados per esta mesma sensação. Os Evangelhos nos falam do medo dos Apóstolos, dos discípulos, do próprio Jesus (Mc. 14,33). Sentir medo nunca é um problema, a questão é o que fazer com ele; a arrogância impávida, esta sim é um problema.
O trecho de hoje se apresenta, nesta ótica, como resposta ao exemplo que o mesmo Jesus havia dado com a parábola do domingo passado: o que põe fim ao medo é unicamente a certeza da providência de Deus, a qual é a linguagem que somos capazes de entender para manifestar a sua firme amizade. Somente a certeza de que o Pai não O deixaria desamparado deu ao Senhor a força de continuar até às últimas conseqüências um caminho que O deixaria ainda com uma última pergunta nos lábios: «Pai, porque...?». Providência não é resposta às perguntas; mas a certeza da Providência é maior que qualquer pergunta. A providência não é a esperança de uma intervenção “mágica” de Deus, mas sim é o resultado de uma história construída juntos, lado a lado nos momentos mais complicados. Uma história que não o pode ser apagada e por isto o seu resultado é fiel até o fim. A providência é a certeza da continuidade do amor, mesmo quando isto não seja tão facilmente visível. É tudo quanto restou a Jesus no último momento de sua vida.
Se, às vezes, imaginamos a providência de Deus como o ato com o qual Ele resolve o nosso problema imediato, evidentemente alguma coisa precisa ser mudado em nós, esta é irresponsabilidade, leviandade. Ao contrário, a Providência é uma atitude responsável e livre de Deus que responde a uma recíproca relação de entrega. Somente quando souber de ter realmente consignado a minha vida a Deus poderei ter realmente conhecer e ter a certeza da Sua providência; foi assim que fizeram os Santos. Enquanto mantivermos a nossa vida em balanço entre as seguranças dos bens e “o Bem”, não haverá como experimentar que Deus provê. É por isto que ouvimos de Jesus: «Coloquem à venda os vossos bens... Porque, onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.»; «Que vossos rins estejam cingidos» (o que significa: “estejam prontos a partir”). É claro que aqui Jesus não nos impõe uma obrigação, o patrimônio é um direito natural -no entender da Escritura-; trata-se de um “conselho” (como é chamado pela tradição da Igreja e no Magistério que diz respeito à Vida Religiosa), é o conselho que Jesus dá para podermos assim fazer experiência da bondade do Pai, que não deixa sozinho quem a Ele se entrega. É a possibilidade de estabelecer um laço sempre mais profundo e forte, de amorosa e livre dependência, de entrega e pertença, como num matrimônio no entender dos Profetas (por exemplo Os. 2). É a possibilidade de conhecer até onde vai a “benevolência” que Deus tem para conosco e, esta, é tanto mais profundamente percebida por nós quanto mais estrita for a relação de reciprocidade, bem como lapidariamente descreve a Escritura: «A benevolência do Senhor é assegurada aos homens piedosos. O seu favor os torna alegres e felizes» (Eclo. 11,17). Como aqui, também nos lábios de Jesus certeza da Providência é associada a um conceito de grandíssimo relevo e de longa história que ressoa assim: «Foi do agrado de Deus dar a vocês...». Conhecer a providência de Deus é por um lado fruto da correta posição na qual o homem se coloca, por outro, não se pode esquecer que nasce da certeza de um amor privilegiado por parte do Senhor. Ao ser anunciada ao mundo a vinda do Salvador, os anjos o fazem com estas palavras: «Glória a Deus no mais alto dos céus e paz aos homens objeto da benevolência de Deus» (Lc. 2,14) ora, aqui Jesus usa o mesmo verbo (eudokhsen) quando diz: «foi do agrado do Pai». Literalmente significa “decidir em favor de....”, “se agradar com...” e indica a plena liberdade de Deus quando escolhe. Pois bem, estamos diante de uma inexplicável atitude de Deus com a qual Ele escolhe um caminho, um instrumento, antes que outro para implantar o seu Reino. O «pequeno rebanho» é, então o instrumento que Deus escolheu com a sua profunda liberdade, -sem precisar dar explicações a alguém- para que a salvação entre a fazer parte da vida da humanidade na sua história. Jesus usa esta mesma expressão quando se alegra pelo fato de o Pai ter «revelado aos simples» (Lc. 10,22) o Reino; é a mesma que o povo ouve o Pai dizer de Jesus em seu batismo (Lc. 3,22). O verbo expressa a absoluta escolha que Deus pode fazer quanto aos caminhos que a Salvação percorrerá enquanto estiver sendo oferecida aos homens. Porque Deus “se agradou” com a oferenda de Abel e não da de Caim? Porque «O Senhor se agradou com Ele pelas suas dores» (Is. 53,10)? Porque «Foi do agrado de Deus salvar o mundo com a loucura da pregação» (1Cor.1,21)?
Deus escolhe e escolhe com a sua absoluta liberdade.
É evidente como as nossas tentativas de dar respostas sejam totalmente insuficientes e, não obstante, nós procuramos ainda explicações atribuindo a Deus qualquer uma delas. Foi assim que nasceram entre os hebreus as categorias de pessoas “abençoadas” e “amaldiçoadas” por Deus (o que se repete hoje numa certa teologia da prosperidade pregada pelas seitas religiosas): pobreza e doença são, nesta ótica, resultado do castigo de Deus ou da culpa cometida. Jesus mostrou claramente como isto é totalmente inconsistente (cfr. Jo.9,3).
Aquele Deus que «escolheu o que é fraco para confundir os fortes» é o mesmo que escolheu o «pequeno rebanho» para levar a cumprimento o seu projeto e a sua oferta a toda a humanidade. Nota-se, no entanto um certo desconforto, um certo sentido de embaraço generalizado, em levar a serio esta “decisão em favor de” expressa pelas palavras de Jesus. É comum entre os cristãos a atitude de evitar o assunto do “privilégio”, mais ainda quando se trata de um cristão que se manteve fiel àquela comunidade de fé que Jesus desejou. Quão é estranha esta atitude! E pensar que foi justamente a consciência de possuir um tesouro dado gratuitamente, um privilégio não concedido a todos, a força que impulsionava a missão da Igreja primitiva!
É lógico que “privilégio” não pode ser confundido com “merecimento” pois, deste modo sim estaríamos cometendo uma presunçosa injustiça. Ser objeto da benevolência específica de Deus é uma honra, uma grande responsabilidade. Não é um ato com o qual Deus, pressupostamente, reconhece a superioridade das nossas qualidades; cabe aqui lembrar que Deus escolheu realmente o que é mais fraco, o que é mais sujeito à fragilidade, e não o que é “melhor”. Em todo caso, não reconhecer a “benevolência” de Deus é desconhecer a escolha que Ele fez; é desconhecer a nossa condição de instrumento que vale justamente porque é frágil. Este delicado equilíbrio entre a consciência de ter sido escolhida gratuitamente por Deus e a própria fragilidade é parte de uma das mais bonitas composições dos textos da Escritura: o Magnificat de Maria.
Lembremos sempre e com humildade o ato de gratuito amor com o qual o Senhor quis nos envolver naquele projeto que terá um êxito de felicidade para todo homem que a este se abrir. Sejamos orgulhosos e humildes, como Maria, porque adotar a lógica de Deus e não vender-se às culturas massificadoras (como eram chamada nos anos ’60) ou “globalizantes” (com um termo mais moderno e elegante) é sinal de que o nosso coração está realmente onde está o nosso tesouro: com Deus.


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