quinta-feira, 27 de setembro de 2007

26° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo B.)

A parábola que hoje o Evangelho nos propõe retrata muito bem a condição de vida nos tempos de Jesus; é bem possível que tal narração Jesus a tenha formulado inspirando-se a fatos aos quais presenciou e que não eram tão infrequentes. Sabemos que a injustiça que torna algumas pessoas ricas e outras pobres sempre foi recriminada por Jesus, contudo, é com certeza simplória e errônea a leitura desta parábola se a entendermos como exaltação da pobreza e deploração da riqueza. É obviamente uma distorção preconceituosa querer demonstrar a todo custo que Jesus foi um socialista moralizante que propunha a justiça entendida como paridade econômica. Por quanto alguns tenham se arriscado em tais hipóteses de fato os argumentos apresentados têm se demonstrado totalmente insuficientes; por isso teremos que fazer outro tipo de leitura, se quisermos nos aproximar com liberdade das palavras que o Evangelista nos oferece para a reflexão. Algumas edições da Bíblia e alguns folhetos da Missa, insinuam preconceitos moralizantes que não nos ajudam na leitura da parábola quando escrevem: “parábola do rico mau....” ou semelhantes atributos. É preciso ler o texto desvinculando-nos de tais precipitados julgamentos, pois o texto não dá nenhum indício de que Jesus esteja julgando, nem o rico nem o pobre.

Creio que seja oportuno, então, reconstruir alguns aspectos do contexto no qual Jesus fala pois, sem conhecer o meio em que Jesus vivia é fácil criar uma imagem nossa de um Jesus ideal, imagem que pode não corresponder àquilo que os Evangelistas nos transmitiram. Para podermos aplicar as palavras e gestos de Jesus à nossa época e à nossa situação particular, é preciso faze-lo tendo bases objetivas, somente assim saberemos realmente “qual” Jesus amamos e seguimos, caso contrário adoraremos uma imagem de um “alguém” criado pelo nosso sentimento ou fantasia. Vamos percorrer a parábola.

Jesus estava falando em Jerusalém. É na cidade que as diferenças econômicas e sociais se tornam mais evidentes e conflitantes, assim era também em Jerusalém; ali se concentrava a riqueza e a miséria, lado a lado: a imagem do rico e do mendigo Lázaro.

O texto narra de um homem rico, sem nome. A questão sobre a qual a parábola aponta desde o início não é centralizada sobre riqueza e pobreza, o que está em jogo é a ostentação da riqueza; podemos ver como a narração aponta mais sobre a qualificação da riqueza do que sobre a própria riqueza. O texto especifica que os trajes daquele homem eram de «púrpura e bisso» (e não “roupas finas e elegantes” como alguns traduzem); ora, o tecido cor de púrpura era muito caro; era usado pelo Sumo Sacerdote, pelos Imperiais, pelo Rei, enfim, por pessoas de alto relevo na sociedade. A narração acrescenta à púrpura o “bisso”, este era um dos tecidos de custo mais elevado ainda, era importado do Egito e de tal delicada consistência que alguns papiros o definem “de ar” (significado da palavra “bisso”). A questão, então, gira em torno do esbanjamento da riqueza usada como meio de auto-afirmação, algo que não é muito distante das nossas experiências do dia-a-dia. Na maioria dos casos a riqueza supera o natural desejo de bem-estar e se transforma em símbolo, um instrumento para afirmar a si mesmo. Afinal, não é freqüente ver casas de dois andares e um exagero de cômodos para duas pessoas? Porque? Porque é preciso usar roupas cujo valor supera amplamente a compreensível superioridade de qualidade? Até que ponto esta “melhor qualidade” é real, ou uma desculpa para não dizer a nós mesmos que precisamos usar uma grife para mostrar algo de nós mesmos que não conseguimos de outro modo? Será que não é por medo de sentirmo-nos inferiores? Será que não é por medo de não sermos aceitos em algum determinado ambiente que desejamos? Muitos destes sentimentos podem ser entrevistos na própria parábola. Na época de Jesus, mostrar riqueza era uma forma de adquirir prestígio e conseqüentemente ter acesso às camadas importantes da sociedade. Oferecer banquetes e dádivas era a ação típica para indicar a superabundância dos bens e, com isto, sugerir que o oferecente estava em condição de sustentar o custo de uma vida elitista, superior ao comum, a vida das classes dominantes. A ostentação era o símbolo próprio do poder, esbanjar riquezas significava demonstrar um poder incomensurável. O prestígio das pessoas e seu poder eram freqüentemente medidos pela capacidade de oferecer dons, assim, por exemplo sabemos que o rei Herodes, para recuperar o seu prestígio diante de Roma, ofereceu-se para construir obras e monumentos em cidades e ilhas estrangeiras, assim como em Laodicéia, Bíblos, Atenas, Damasco etc. (às custas dos impostos públicos). Banquetes e trajes requintados tinham a mesma finalidade. Vemos, portanto, que o desejo do homem era fundamentalmente voltado ao fato de ser aceito dentro de uma camada prestigiosa da cidade; ele precisava de reconhecimento, precisava não ser tido como “um qualquer”..., precisava de apreço e o buscava com os meios que considerava mais eficazes, os meios da mentalidade comum, paradoxalmente, bem enquanto queria ser diferente do “comum”. Na verdade era um rico que mendigava consideração.

A outra imagem é a do indigente, ele tem um nome: Lázaro. Não pode passar despercebida a atenção especial do Evangelista: este homem sim não é um qualquer, tem um nome, um nome perante Deus, um nome que significa “Deus ajuda”. O homem chamado “Deus ajuda” é um homem que busca o essencial em sua vida, que busca o direito de viver com dignidade e isto lhe é suficiente, que não corre atrás da consideração de outrem, afinal, parafraseando as palavras de Jesus, que não «busca a glória um dos outros» (Jo. 5,44).

O empobrecimento em época de crise era fácil, e os efeitos se sentiam principalmente na cidade. Por exemplo, sabemos que o preço do pão de uma ração diária era de 1/25 de denário (1 denário era a paga de um dia de trabalho) mas em épocas difíceis chegava a custar 16 vezes mais –segundo relata o historiador judeu Josefo Flávio-. A época de Jesus não pode ser definida propriamente de “crise econômica”, contudo sabemos do grande desemprego que havia, fato pelo qual Pilatos mandou fazer trabalhos públicos desnecessários, com a finalidade de dar emprego, como a pavimentação de ruas apenas pavimentadas (como demonstram as duas camadas de pedras de corte contemporâneo evidenciadas pelas escavações). Por questões religiosas que não vêm ao caso agora, distribuição de esmolas em Jerusalém era considerado um fato meritório pois a cidade era “santa”; dar esmolas era considerado um ato que remitia os pecados especialmente perto das festas e orações públicas. Este fato enchia a cidade de mendigos os quais disputavam entre si os lugares de arrecadação de esmolas. Cada um tinha o seu lugar próprio, como parece ser o caso de Lázaro. Um texto rabínico (Mishná Meghilla) fala de “dez mendigos e pessoas ociosas” cada cem habitantes. Moravam nas ruas; sobreviviam indo de festa em festa para mendigar, ou associando-se a enlutados nos funerais para receber algum benefício em troca de seus lamentos pelo falecido.

Pois bem, tais considerações nos ajudam a entender a atitude do rico: para ele era “normal” ver o mendigo sempre no mesmo lugar toda vez que ele dava um banquete. Ora, é bem aqui que se coloca o problema, quando tudo o que deveria ser inaceitável se torna “normal”. Quando algo nos é apresentado como “normal” não sacode mais os sentimentos mais profundos e naturais da consciência, é mais fácil dizer que algo é “normal” do que se indignar com o que os nossos olhos estão vendo. A normalidade abafa, sufoca o infinito que está presente no homem e que o manifesta como imagem de Deus. Tudo se aceita quando é apresentado como “normal”, infelizmente é quanto assistimos diariamente através dos que desejam mudar os valores mudando a leitura da realidade.

O rico acostumado a ver Lázaro à porta de casa acabou entrando no pérfido jogo da “normalidade”, tornando-se ele mesmo insensível ao problema do outro, incapaz de ver o mundo do ponto de vista daquele que a vida colocava, ritualmente, à soleira de sua casa. Nota-se, na narração que existe um sentimento de comiseração quanto ao rico, não de rejeição ou condenação pois Abrão continua chamando ele de “filho”. O rico, visando somente seus objetivos, mendigando consideração, acabou desconsiderando quem mendigava dignidade. Ora, a Escritura fala de um único Direito que Deus sempre defenderá: o direito à dignidade, em qualquer condição o homem esteja, pois esta dignidade que ele possui é reflexo da dignidade do próprio Senhor. É por isso que o mendigo se chama “Deus ajuda”.
Vem, então a necessidade de perguntarmo-nos: “como, Deus ajuda?”. É preciso esclarecer imediatamente um mal entendido: a inversão da sorte no outro mundo é um mito pagão, não encontra fundamentação na Escritura a não ser como influência de uma fábula Egípcia (a viagem de Si-Osíris). O “céu” não será o oposto daquilo que vivemos aqui, como às vezes pode parecer que diga esta parábola (é uma delonga desnecessária agora mostrar que a visão da Escritura quanto à vida eterna é outra). “Ser introduzido no seio de Abrão” é uma expressão judaica que indica entrar no âmago da Aliança, participar a pleno direito da Promessa. Pois bem, “Deus ajuda”, Lázaro, receberá a justiça que tanto desejou: ser respeitado na sua dignidade, mesmo que coberto de doenças, mesmo que em condição desfavorável, não importa em que lugar o homem esteja, ele é sempre imagem de Deus e esta imagem nunca pode ser desconsiderada com a desculpa de outros objetivos que precisamos alcançar.

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