quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

3° Domingo da Quaresma (Pe. Carlo Battistoni)

Grande deveria ter sido a surpresa e o embaraço dos apóstolos quando, voltando depois de ter ido comprar alimentos para a viagem, não encontraram Jesus do mesmo modo como o haviam deixado: sozinho. Ele estava a sós com uma mulher… e uma mulher samaritana! Podemos perfeitamente imaginar a situação constrangedora e o incomodo daqueles discípulos que O consideravam mais que um rabi. Nunca havia sido visto um rabi conversar a sós com uma mulher. Aliás, para ser rabi a boa reputação era tão necessária quanto o conhecimento da Lei. A leitura inteira do episódio, mostra duas vezes a reação atrapalhada dos apóstolos diante daquilo que estavam vendo (infelizmente alguns folhetos da liturgia propõem somente uma parte deste Evangelho, e isto nos causará um pouco de dificuldade para entender a amplitude o fato narrado); ora, justamente o superamento dos preconceitos é o tema central que roda em torno do episódio da mulher samaritana. Anos depois os discípulos conseguiram rever naquele episódio o indício que o próprio Senhor havia dado a fim de que a comunidade de fé estivesse sempre unida e fiel ao seu patrimônio de valores, mas não se entrincheirasse em padrões comportamentais, confundindo as realidades que vêm de Deus com outras que vêm dos homens. Dentro desta ótica vamos tentar ler com atenção o trecho, com as ressalvas necessárias devida às possíveis opções litúrgicas.
É verão, em pleno meio-dia, o calor e o cansaço da viagem estão na origem deste episódio. Como das outras vezes, vemos que Jesus não possui um “projeto” de evangelização ou esquemas semelhantes, simplesmente sabe colher a intensidade de cada momento que o Pai Lhe oferece e o transforma num momento de encontro, num ato “salvifico”.
A indicação da “hora” é uma característica importante no Evangelho de João pois indica que algo novo acontece “agora”. O Reino não é uma quimera longínqua, mas algo que acontece e acontece num determinado momento. Este momento, único, é salvífico porque muda radicalmente a história, de um homem e da humanidade. O meio-dia, para o Evangelista, é a hora da plena luz, quando tudo fica claro, nada se esconde na sombra. É ao meio-dia que Jesus é julgado diante de Pilatos, é ali que, pela única vez, Jesus se declara Rei; é reconhecido “rei” por um pagão e é rejeitado como “rei” pelos próprios judeus. É o julgamento da luz, da verdade –como veremos mais adiante neste mesmo trecho-. È na hora da luz, ao meio-dia, que Jesus se oferece como alternativa a uma série de julgamentos ordinários.
O primeiro é aquele que divide as pessoas e que as prende, amarra e sufoca a instintiva solidariedade entre elas. A Samaritana fica cheia de espanto quando Jesus não a vê como uma “samaritana”, mas sim como uma mulher: «“Como? Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim, uma mulher samaritana?”». Todos têm “sede”, todos são profundamente homens antes de serem isto ou aquilo. Quantas vezes acontece que, somente em caso de uma desgraça, de uma catástrofe que varre indiscriminadamente, re-descobrimos que somos apenas pessoas! Quando esquecemos o essencial de nós mesmos, quando o “resto” toma conta dentro de nós é que começam separações e divisões. A divisão entre Samaritanos e Judeus era de longa data (931 a.C.); a primeira ruptura foi por causa da confusão entre dimensão religiosa e política no meio do mesmo povo, Israel (narrada em 1Rs. 12). Mais tarde, durante o período em que Judeus e Samaritanos foram deportados para Babilônia não se houve falar de divisão; contudo, quando Israel regressou após o Edito de Ciro 537(538), a divisão voltou com maior força, principalmente quando se tratou de reconstruir o Templo que deveria ser o sinal da unidade (fato narrado em Esd. 4). Foi assim que os Judeus construíram um Templo em Jerusalém e os Samaritanos sobre o monte Garizim (daqui a pergunta da Samaritana sobre qual fosse o culto “certo”). Na época de Jesus este Templo não existia mais, -por isso a mulher não usa a palavra “Templo” mas sim “monte” - pois cem anos antes, os Samaritanos foram atacados pelos Judeus que derrubaram o Templo.
«Não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher…» escrevia Paulo (Gal. 3,28) muito tempo depois. Esta convicção era clara na Igreja primitiva, coisa que lhe custou vários mártires uma vez que contradizia o sistema social, dividido rigidamente em classes (cfr. Platão: “Apologia de Sócrates”). A pessoa vale mais do que a situação em que está, este é um princípio basilar do Evangelho.
O segundo preconceito é representado pela ilusão de se encontrar com Deus através das regras, da Lei, do próprio esforço individual. Vejamos como João no-lo indica.
Cavar um poço era uma obra grandiosa na antiguidade, o risco era grande, na maioria dos casos eram mais os insucessos que os resultados. O poço cavado no terreno que fora de propriedade do Patriarca (Gen. 33,19) tinha uma profundidade de 32 metros e conseguiu dar água ininterruptamente por 500 anos. Que herança maior poderia ter deixado Jacó? Ora, a literatura dos rabinos comenta em sentido simbólico a água associando-a à Lei; igualmente encontramos esta convicção em profetas como Ezequiel (47) e Zacarias (14,8) onde a salvação que chega a todos os povos é representada por um rio que sai de Jerusalém, de suas instituições, culto etc. O quadro descrito pelo Evangelista, mostra algo totalmente diferente. Um poço é resultado do esforço humano, uma fonte não, é um dom de Deus. É por isto que Jesus é apresentado como «sentado junto à fonte» e não a um poço. A mulher precisa de um instrumento para atingir água de um poço; não é preciso nenhum instrumento para atingir água dum manancial, ela brota espontaneamente. Substituindo a expressão “poço” por “fonte”, o Evangelista usa o mesmo vocábulo usado para falar das águas de Meribá (Ex. 17; Nm 20 etc.). Elas são um manancial, uma fonte, um dom que Deus deu em resposta à confiança de Moisés e à sua fidelidade ao projeto de Deus durante a crise do deserto. A Lei e as regras são como um poço, a fonte é um dom. Aquilo que Jesus está disposto a dar se coloca, então, na linha de uma “fonte”, não de um poço escavado por um homem. Confiança, fidelidade são as atitudes que permitem a Jesus de ser “fonte”, de dar a sua água. Uma água que vem de uma fonte e se transmite como uma fonte. Gratuita, espontânea, sempre em movimento dentro da pessoa que dela bebe; capaz de gerar os mesmos sentimentos e atitudes também em outros homens; uma fonte que se propaga por si própria. Dom que se transforma em outro dom, um círculo de gratuidade sem limite, capaz de modificar tudo – como acontecerá com a mulher-. Ezequiel (47,1-8) dirá que a “água do Templo” é capaz de sarar as águas amargas e dar-lhes a vida, João dirá que esta água é a gratuidade de Deus, descoberta em Jesus. A releitura entre a rocha da qual brotou a água do deserto e a nova pedra, Jesus, se faz evidente lendo esta carta de Paulo: «Os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar… Todos eles comeram de um só alimento espiritual e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo» (1Cor.10,1ss).
Continuando na leitura, encontramos um outro esquema que Jesus quer romper. Os judeus estavam convencidos (por uma tendenciosa interpretação das Escrituras) de serem os depositários da salvação. Como se a salvação estivesse ligada a eles numa forma fisiológica de modo que o simples fato de pertencer ao povo Hebreu, de seguir os ditames e regras, garantisse a salvação. Do modo como é apresentado pelo Evangelista, ao contrário, Jesus se declara fonte que brota para todos num território alheio, forasteiro. Isto porque não é possível associar o Reino a uma determinada maneira de entender o Reino, a uma específica cultura ou modo de ver. O Reino supera qualquer particularidade e presunção. O Reino é Jesus, descoberto como fonte, independentemente de quem consiga fazer isto. A este propósito o Evangelista usa a condição familiar da Samaritana para introduzir um outro elemento essencial para o caminho da fé. Ela «não tinha marido» porque «tinha cinco» (parte que alguns folhetos omitem, infelizmente). Por si própria esta expressão é difícil, mas não fica tão complicada assim se a associarmos ao fato de que os Samaritanos, por uma questão de princípios, por não querer identificar-se com os Judeus e por uma outra série de motivações, acabaram recusando grande parte da Escritura, retendo somente o Pentateuco, os primeiros cinco livros da Escritura («cinco maridos»). Segundo eles, somente estes eram inspirados por Deus e o resto era fruto do judaísmo (algo semelhante aconteceu também em torno de 1520 com o cisma de Lutero e seus sucessores em relação à Igreja Católica).
À Samaritana que Lhe perguntava qual fosse o culto certo, Jesus respondeu mudando completamente de plano: «vai chamar teu marido». Invés que um culto, Jesus fala de uma relação, tendo como imagem o profeta Oséias que compara a verdadeira relação entre Deus e o homem ao seu matrimônio, onde o amor e a fidelidade foram capazes de superar também a prostituição de Gomer (esposa de Oséias). O Verdadeiro culto não se dá num monte ou num Templo, não é ligado a este o àquele ponto de vista, nem à presunção de estar acima da história e da tradição. A Samaritana «não tem marido» porque não possui uma relação estável; os «cinco» não são maridos dela porque ela escolhe o que quer. Os «cinco» -simbolicamente falando com João- são somente fruto de um capricho particular, não são o que Deus propôs ao inteiro povo de Israel. Para reforçar esta sua posição, Jesus categoricamente afirma à mulher que «a salvação vem dos judeus», mesmo que estes tenham interpretado erroneamente e manuseado a seu interesse esta verdade. Se desligar daquilo que Deus estabeleceu, do seu projeto, mesmo com a convicção de estar no “certo”, não combina com a salvação.
Por último, Jesus propõe o culto autêntico com estas palavras: «os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade », que na linguagem bíblica significa: respirar a presença (Espírito) e ser confiável, fiel (a palavra “verdade” tem a mesma origem de “fidelidade”, “ser digno de credibilidade”).
Superados os preconceitos peçamos a Deus que nos ensine a beber da fonte que nos mantêm vivos, autênticos, capazes de transluzir a presença de Deus.


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