sexta-feira, 4 de abril de 2008

3° Domingo da Páscoa (Pe. Carlo)

Poucos trechos narrativos do Evangelho de Lucas são tão carregados de significado para a comunidade de fé como o que acabamos de ler. Sem dúvida a intenção supera de muito o fato de expor um acontecido com o intuito de fortalecer a certeza de que Jesus havia ressuscitado. Não se trata de uma narração comprobatória; pois casos semelhantes são simplesmente mencionados de passagem em outros contextos do Novo Testamento. O evangelista Marcos, por exemplo, mais sensível à dimensão existencial e pessoal do encontro com Cristo em seu Evangelho, resume o episódio de Emaús com estas breves palavras: «Depois disto, Jesus manifestou-se em outra forma a dois deles que estavam de caminho para o campo. E, indo, eles o anunciaram aos demais, mas também a estes dois eles não deram crédito.» (Mc. 16.12-13). Lucas descobriu neste evento algo que supera o próprio fato, e que se projeta no mistério. Precisaremos procurar alhures, então, o seu significado mais profundo.
Sabemos que este trecho foi usado muito na Igreja primitiva como uma das mais antigas catequeses sobre o sentido da existência da comunidade de fé após a morte de Jesus. Como em botão, aqui estão presentes fatos, sensações, atitudes, escolhas e tentações que sempre estarão presente e vivas na Igreja de todos os tempos. Ler e contemplar o trecho que a Liturgia hoje nos oferece à meditação é entrar em contato com a vida da comunidade cristã, vida que olhos estranhos não conseguem ver. Procuremos acompanhar passo a passo alguns aspectos desta narração, tendo que escolher de privilegiar somente alguns por questões obvias.
Vimos que, para o Evangelista Marcos, este encontro é casual e se dá “no campo”, ou seja nos arredores daquele vale verdejante que de Jerusalém desce para o lado norte-ocidental. A explicitação de Lucas é casual? É um simples interesse de precisão? Porque é importante mencionar a aldeia de Emaús? Podemos desde já excluir o interesse puramente descritivo e meticuloso neste caso, pois as distâncias que são referidas provocam uma certa dificuldade, tanto que se trate de 60 estádios ou de 160 estádios (como em alguns manuscritos tardios) pois, mesmo que se tratasse de 60 estádios em subida, de noite, precisariam não menos que 4 horas de caminho o que tornaria inviável a segunda parte da narração onde se diz que os discípulos voltaram «na mesma hora» para Jerusalém. Logo não se trata de um interesse descritivo. Mencionar Emaús é, para Lucas, dizer que a mesma primeira tentação que assaltou Jesus no início do seu ministério, uma proposta muito cativante do demônio, será a mesma tentação que se apresentará sempre para a comunidade cristã. Com esta tentação esta deverá sempre conviver; como Jesus fez, precisará continuamente saber escolher; ora conseguirá superar, ora se deixará atrair. Mas em todo caso, Jesus estará sempre com a sua comunidade enquanto esta olhar para Ele. Este é o sentido principal do trecho.
A decepção é o clímax que paira sobre os dois discípulos.Tristeza e outros sentimentos são decorrentes desta primeira fundamental sensação de se sentir como que traídos por Deus, por aquele Deus no qual haviam depositado suas expectativas, no qual haviam confiado sabendo dos grandes gestos do passado, um passado glorioso no qual Jahvé havia mostrado o seu poder diante de todas as nações. Como não imaginar que em seus corações não se encarnasse a mesma decepção do Samista: «De noite indago o meu íntimo, e o meu espírito perscruta. Será que o Senhor nos rejeitou para sempre? Não será mais propício conosco? A sua promessa, afinal, terá falhado? ... Esta é a minha aflição: mudou a destra do Altíssimo.» (Sal. 77). Esta sensação de fracasso; da insuficiência de Deus diante do extrapoder dos fortes; da fragilidade da fé que –assim- parece revelar-se como um conjunto de ilusões; esta sensação é um sentimento que sempre estará vivo entre os que foram capazes de aderir a Deus mesmo que por um só momento. A comunidade conviverá sempre com esta sensação. Sempre, as coisas de Deus parecem “capengar”, “agoniar” (permito-me usar uma expressão do Papa Bento XVI). Diante disto, as pessoas da comunidade poderão sempre escolher como agir: permanecer ou procurar outro caminho.
Os dois haviam escolhido o outro caminho, contrariamente aos Onze que, mesmo vivendo os mesmos sentimentos deles, continuavam «estando reunidos». Que caminho haviam escolhido? Emaús no-lo diz. Era uma aldeia-símbolo; ali Judas Macabeu em 166 derrotou Gorgia, o grande general do rei Antioco, (1Mac. 3-4) o qual havia imposto a religião e os costumes gregos sufocando no sangue as tradições e a religiosidade dos Judeus. E mais, ali, no ano 4, Athrongius comandou uma revolta contra os Romanos, revolta esta com todas as características messiânicas. É lícito supor que, aquele Bar-abbas (“Filho do Pai”, nome de batalha messiânico) que a multidão escolheu em lugar de Jesus tivesse participado da mesma revolta. Eis então a decisão a ser tomada: continuamos com Deus e com sua lógica incompreensível, que não parece surtir efeitos, que não muda nada... ou? Este era o objeto da conversa e discussão entre os dois; conversavam, discutiam, mas, bem no fundo, já haviam feito a própria escolha... Ainda: Jesus ou Bar-abbas?
Voltar a Emaús significa escolher de “agir” aonde Deus parece fracassar. É a tentação de construir com as nossas mãos o nosso mundo, já que Deus parece não resolver os nossos problemas de fome, guerras, injustiças, violência à dignidade da pessoa humana. É a tentação da proposta alternativa do homem ao agir de Deus: já que Deus não resolve com os seus projetos e caminhos, então faremos nós, de outro modo. Messianismo que reaparece ciclicamente em muitas épocas da nossa história, sob as formas mais mistificadas.
Às vezes passo diante dum monumento, escuro, dominante, que deixa um certo ar sombrio em torno de si, tanto que percebi que o “povo”, as pessoas comuns, não se sentem à vontade perto do tal monumento: este retrata o homem esculpindo a si mesmo com marreta e talhadeira. Mas então, é que é cabível se perguntar: o que esculpimos se não conhecemos sequer quem somos nós mesmos?
Emaús era a tentação dos dois e de todos os discípulos que vêem o aparente insucesso de Deus como a justificativa de se substituir a Ele. Como os dois pensavam, hoje podemos nós também dizer: “afinal, o que Jesus trouxe, se o mundo novo que prometeu não aconteceu, se as pessoas continuam se matando, se o interesse particular continua sendo a norma de tudo, se o Estado ainda se impõe com a sua injustiça “justificada” e formalizada...?”. “Façamos com as nossas mãos e deixamos que Deus fique lá onde está!”. Nós sabemos o que é bom para nós. Mas, realmente o sabemos? Quais foram os grandes resultados prognosticados pela Revolução Francesa que se apresentava como uma mudança radical de liberdade para a humanidade inteira? Ou as “grandes” revoluções, como a Industrial, a Bolchevista, a Maoísta a Capitalista, a New Age... Realmente foram capazes de trazer mais felicidade ao homem, que deve percorrer passo a passo o caminho da sua existência? Ou foram desculpas para substituir um poder com outro?
A tentação do messianismo bate sempre às portas e convive com a pessoa que não vê, mas quer resultados imediatos, pessoa cujos olhos são «como que cegos» do mesmo modo que os dois discípulos. Pessoas que andam, andam, discutem, usam até as Escrituras, encontram nelas um certo «calor», mas não conseguem dar um passo além, não são capazes de ver que, dentro da realidade que experimentam existe uma outra que caminha lado a lado, capaz de preencher o vazio que sentem.
Discutir é sempre mais fácil que contemplar.
Perceber e sentir a nova maneira com a qual o Ressuscitado está vivendo com a comunidade para a qual se dedicou sem limites não é algo tão obvio.
Contudo, mesmo que vencidos por sua tentação, Jesus não permite que a sua comunidade se perca, decide ficar até o fim, dar ainda a sua vida na comunhão e na fração do pão. Decide responder à última possibilidade que qualquer pessoa ainda tem quando está esmagada pela decepção, pedir: «fica conosco».
... e Jesus ficou.

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