quinta-feira, 29 de maio de 2008

9° Domingo do Tempo Comum (Pe. Carlo)

O trecho do Evangelho que acabamos de ler encerra em Mateus uma coletânea de ensinamentos sobre o conjunto da fé cristã, chamada “Discurso da montanha” (Mt. 5-7). Com grande probabilidade esta longa coleção de palavras, nasceu da necessidade dos primeiros pregadores itinerantes que precisavam de um compêndio que recolhesse num único livrinho os ensinamentos de Jesus. Com estes pressupostos podemos entender mais facilmente a expressão: «estas minhas palavras», pois não se trata de preceitos ou regras que devem ser cumpridas, mas sim do conjunto da visão que Jesus tem sobre o mundo, as relações dos homens com Deus e as relações destes entre si. Trata-se de um todo, descrito com incrível acuidade nos seus pormenores, que nos permite penetrar a leitura do mundo e de sua história que Jesus têm e o seu estilo de encarnar o homem novo.
O processo do pensamento religioso de Israel, como também o de muitas religiões da época, dificilmente era capaz de superar a idéia de que, para ser justo diante de Deus e conquistar a vida eterna o essencial fosse seguir os preceitos e as regras que se encontram depositadas em livros ou na sua interpretação (por exemplo o Talmud). Com Jesus, porém, estamos diante de algo novo: se tentássemos organizar esquematicamente ou por assunto os ditos de Jesus, tentando extrair deles alguns princípios teríamos um trabalho muito pouco proveitoso e algumas surpresas, descobriríamos uma série de aparentes “incoerências”, de contradições etc. o que não acontece, por exemplo, com uma legislação. É bem aqui que está a novidade: a fé do discípulo de Jesus não se identifica com a obediência a normas, mas com a adesão a uma pessoa. Ora, uma pessoa é uma pessoa, não um tratado. A pessoa age movida por um valor que está na base da sua vida e que orienta tudo, palavras, atos e atitudes que às vezes parecem ser contraditórias... Uma pessoa é sempre um mistério indefinível, que não pode ser enquadrado em esquemas (esta foi a tentação de Davi, dos fariseus e rabinos e muitos outros como Judas o Iscariotes ou algumas visões de Jesus contemporâneas). Seguir a Jesus é, então penetrar o Seu mundo, o Valor que rege o sentido do Seu existir no mundo dos homens, a Sua relação com o Pai… Mas isto é impossível somente apegando-se a uma ou outra frase, como pretendem alguns que constroem a sua fé sobre palavras de Jesus isoladas completamente do conjunto. «Estas minhas palavras» não são as normas que Jesus dá, mas sim o caminho para poder penetrar o Valor, a motivação, o porquê… enfim a Sua «vontade», o seu “coração” – diria um hebreu.
A passagem que lemos se abre imediatamente com o alerta sobre um possível mal-entendido no qual pode cair um discípulo. São colocadas, uma diante da outra, duas situações; a primeira significada por estas palavras: «Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus» e a segunda com: «aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus». Entre uma e outra encontramos uma clara separação: «mas». Com a primeira Jesus não critica a dimensão da oração ou da vida interior, seria um grave engano interpretar assim o que Ele disse; não podemos encontrar aqui uma crítica ou uma oposição entre “espiritualidade” ou “prática” (como já aconteceu em certas épocas), mas sim um alerta contra a ilusão de que dizer «Senhor, Senhor» seja suficiente para «entrar» no onde está o coração de Jesus, entrar no Seu mundo. Jesus se limita em dizer: «nem todo aquele». O tipo de relacionamento que pressupõe esta maneira de agir é sem dúvida fundamental, pois não é possível que sejamos capazes de construir uma relação madura com Deus se não formos capazes de estabelecer uma relação de intimidade e profunda afetividade.Todavia o alerta de Jesus é sobre o perigo de que a oração não seja mais para Deus mas para nós mesmos, para ficarmos apaziguados com as sensações; e pior, quando estas não são mais capazes de satisfazer o nosso emocional pode existir o perigo de correr atrás de estímulos sempre mais diversos, esquisitos, que acabam alienando do mundo real quem que se achava “discípulo” de Jesus mas que na verdade corria atrás de si mesmo usando um Jesus imaginário.
O que resguarda o verdadeiro discípulo de Jesus deste risco?
A chave nos é oferecida pela segunda proposição: «Aquele que faz a vontade». Como primeiro ato, vamos nos livrar daquele preconceito materialista onde o “fazer” se reduz a um simples “aplicar”, “cumprir”; se assim fosse estaríamos novamente caindo na atitude de alguns judeus que Jesus tanto criticou. O Evangelista poderia ter usado vários verbos para indicar este “fazer”; alguns indicam o movimento das mãos (prassw), outros o esforço de construir (ergazomai) etc., no entanto a opção de Mateus para tentar expressar o que Jesus pensava se definiu na escolha de um verbo (poiew) que significa “dar forma”, “tornar visível”, “fazer com que exista, que possa ser apalpado”. Evidentemente isto dá uma conotação diferente a quanto lemos; e ainda mais quando descobrimos que Mateus usa o mesmo verbo usado no livro de Gênese, quando Deus “dá forma”, “existência”, “ser” a o que não tinha forma, existência, ser. Eis, então que, com a expressão “fazer”, Jesus põe o discípulo em direta relação com a continuidade do projeto de salvação que Deus estabeleceu para o mundo, para o homem e suas relações. O discípulo “realiza”, no sentido de que torna visível, possível para o mundo, identificável para quem o queira o grande desejo de Deus, sua «vontade». Isto não porque “trabalha com as suas mãos” mas porque encarna em si mesmo o que Deus tem em si mesmo, o que Jesus tem em si mesmo. Diríamos, usando uma expressão de S. Afonso: “Quem faz a vontade de Deus se torna um homem segundo o coração de Deus” (Com. in Ps.29). Tudo isto acontece não com o simples esforço humano nem com a autodeterminação do homem, mas sim com um lento, paciente, atento processo de assimilação entre o coração do discípulo que ama o Senhor e por isso O segue como pessoa, e o coração de Jesus que continuamente se comunica ao discípulo. Trata-se, então de um diálogo feito de profundo desejo de fusão, não de mero pragmatismo nem sentimentalismo. “Fazer” é acreditar que é possível, é dizer ao mundo: “aqui é possível ver que o Reino não é uma fantasia”. É sonhar o sonho de Jesus, é ser missionário com todo o próprio ser, que diz, que deixa transparecer a cada momento o Valor que rege a própria existência, sem precisar de um excesso de palavras. Creio, que um verdadeiro discípulo só pode ser um grande poeta (a origem da palavra vem do mesmo verbo, “poieo”) ou seja, alguém que é capaz de dar forma, visibilizar, traduzir para todos, algo que existe mas que é dificilmente percebido por todos. O discípulo é um anunciador que faz da sua existência uma poesia a Deus, que deixa transbordar a sintonia da própria vontade com a de Jesus.
O texto afunda ainda mais o seu significado. Nos diz respeito à própria ação humana. Uma vez que o Reino é oferecido às pessoas, uma vez que a Palavra de Deus abre novas perspectivas para o homem, deste momento em diante nenhum ato humano é neutral diante de Deus. A Palavra coloca o homem objetivamente diante de si mesmo e da terrível possibilidade de escolher sabendo que a sua opção não será insignificante diante de um projeto que supera o próprio indivíduo. Ouvindo ou não ouvindo, o homem define a si mesmo como «sábio» ou «insensato», isto porque a história tem um seu desfecho próprio, ela irá na direção que Deus deseja. Símbolo disto são os «ventos e enchentes»: estes vêm para todos, prescindindo daquilo que o homem possa pressupor, imaginar, construir com a sua maneira de perceber a história. Esta segue regras diferentes das que podemos imaginar (e disto tivemos muitas vezes experiência nos séculos: nenhum dos grandes sistemas com os quais se pretendia salvar o mundo funcionou, pois o homem de hoje não é mais feliz do que o homem de ontem). O trecho colocado novamente a pessoa diante da sua responsabilidade para com a história, seus atos não são indiferentes, ouvir ou não comportará um ou outro resultado para o inteiro gênero humano, para o seu “mundo”, a sua “casa”. Como são atuais estas palavras! Principalmente no contexto hodierno em que assistimos a uma progressiva aceitação da desresponsabilização como dado de fato: ninguém é responsável, a culpa é do “sistema”, do “governo”, da “globalização”, da “sociedade” e assim por diante. A desresponsabilização é a regra comum que está se tornando sempre mais cômoda, fácil, que deixa tudo em paz. Mas não é este o homem como Deus o imaginou!
Nós, pessoas de fé, por quanto mínima que for, precisamos pedir diariamente a Deus que seja possível “fazer a Sua vontade”, que seja possível ao homem ver que o Pai é pai e nenhum rival do homem; precisamos pedir diariamente que as pessoas possam descobrir de serem amadas para amarem a Deus e para isso o nosso inteiro ser está envolvido com todas as forças, o coração, a mente.
Permito-me encerrar com algumas simples, sábias palavras de S.Nilo Abade: “Não temos que rezar para que Deus faça o que desejamos, mas para que sejamos capazes de dar vida àquilo que Ele deseja”.

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