quinta-feira, 7 de agosto de 2008

19° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

O episódio que acabamos de ler é atípico em relação aos muitos atos extraordinários que Jesus realizava. Os milagres que o Senhor cumpria não eram gestos teatrais com a finalidade de convencer as pessoas, prodígios deste tipo muitas vezes foram solicitados pelas autoridades religiosas de Israel para que Ele demonstrasse ser o Messias esperado. Em todos estes casos a resposta foi negativa; tanto para os fariseus, que exigiam um milagre demonstrativo: «Mestre, queremos ver de tua parte um sinal» (Mt. 12,38), quanto para os sacerdotes, que pediam um ato exclusivamente possível a um deus: «Desce da cruz!» (Mt. 27,42). Para Jesus a fé não pode ser resultado de um ato esmagadoramente demonstrativo pois, quem, diante de um homem que desce da cruz, não ficaria obrigatoriamente constringido a admitir a divindade de Jesus? Mas Deus respeita tanto o homem que não violenta a sua liberdade de escolher, e da maneira de escolher. Deste modo, o trecho de hoje não pode ser entendido se o lermos com uma chave interpretativa errada. Por exemplo, como se Jesus quisesse fazer um gesto espetacular diante dos discípulos. Se assim fosse, não teria sido suficiente a multiplicação dos pães apenas realizada? Evidentemente precisamos trilhar outro caminho para podermos penetrar aquilo que o Evangelista quis nos deixar.
A narração se desenvolve em dois quadros, no primeiro o centro é a barca sacudida pelas ondas, no segundo é a pessoa de Pedro diante de Jesus. As duas cenas convergem na exclamação final dos discípulos: «Realmente, tu és o Filho de Deus!». É, logo, uma narração que diz respeito à fé, aos seus momentos, às suas dinâmicas, aos limites e belezas que recolhe em si. O fato é, como às vezes costumava fazer Jesus, um ato explicativo, capaz de se imprimir no coração muito mais do que as palavras. Jesus nunca disse o que é a fé, simplesmente mostrava o que significa viver a fé. Com esta perspectiva, então procuraremos deixar-nos ensinar como se vive de fé.
Logo de início notamos que Jesus «mandou os discípulos subirem no barco», é difícil encontrar este verbo aplicado aos discípulos nos Evangelhos. O verbo é usado pelos Evangelistas quando Jesus faz algo que é necessário para a fé, como no caso da menina, filha do chefe da Sinagoga (Lc. 8,55). Aqui estamos diante de algo semelhante. Os discípulos vinham de uma experiência única, admirável; eles mesmos haviam se dado contas que o pouco –uns pães e uns peixinhos- que se oferece a Deus confiando em Jesus, é capaz de saciar a fome de muitos. Eles mesmos, que haviam sugerido a Jesus de “livrar-se” do problema da fome da multidão despedindo-a, eles mesmos haviam constatado que Deus não age assim. A admiração, o estupor, a sensação de poder que estavam sentindo logo depois do fato, mantinha os discípulos se comprazendo com o ocorrido, sentindo-se também objetos da atenção da multidão. Se a multiplicação dos pães se deu à “tardezinha” e o barco se encontrava no meio do lago de Genezaré em torno da quarta vigília da noite (três horas da madrugada), levando em consideração a dimensão do “mar da Galiléia”, isto significa que os discípulos se demoraram bastante antes de obedecer à exigência de Jesus! Bem, já temos aqui uma pequena sugestão quanto à vida na fé: é preciso fugir da tentação do “estrelismo”, de “ser destaque”, da tentação de se comprazer na admiração das multidões. Isto é bem perigoso e destinado a cair de um momento para outro, como veremos continuando na leitura.
Ao protagonismo dos discípulos Jesus responde com uma outra atitude: o encontro com o Pai, «para orar a sós », na intimidade de uma relação mais valiosa do que a admiração das multidões. Foi importante para Jesus saciar a fome das pessoas sim, no entanto de mais valia foi o fato de constatar que sempre pode contar com o Pai, o qual havia atendido ao seu pedido que precedeu o milagre. Mais do que a aprovação das multidões a fé exige o reconhecimento da ação de Deus e o agradecimento do mais profundo do coração.
Eis que a narração opõe um segundo contraste: «enquanto ainda» Jesus estava em oração, a barca estava sendo sacudida. De um lado uma profunda calma de outro o medo e a tempestade. O contraste faz pressentir o sentimento de abandono dos discípulos, tão seguros de si mesmo ainda poucas horas antes. Um sentimento que nos recorda a atitude de Marta: «Se você estivesse aqui meu irmão não teria morrido» (Jo. 11,21). Jesus parece sempre ausente quando estamos mais precisando… Então, toda a certeza? Toda a firmeza? Todo o entusiasmo? Resta somente a profunda experiência da fragilidade e da precariedade de tudo quanto não esteja embasada numa relação com Deus construída passo-a-passo, delicada e robustamente.
Com certeza a tempestade de verão no meio de um lago não é algo fácil nem para um experiente grupo de pescadores, mas o medo maior vinha de outra fonte. A água era concebida como um elemento acima do homem, um lugar estranho onde convivem a vida e a morte. Assim como sem água a terra é um teatro de morte a própria água é capaz de destruir e engolir o que estiver à sua frente. Nada pode frear a água; esta possui uma ligação com o mundo inferior, com o “sheol” (lugar dos mortos). É lugar da manifestação das divindades malignas, mas também da ação de Deus. O mar é o lugar onde moram os grandes monstros inimigos do homem e os quatro demônios inimigos de Deus (Dan. 7,3). O hebreu acreditava que -como na época do Êxodo- no final dos tempos o próprio mar, as grandes águas com seus seres malignos, destruiriam e engoliriam os ímpios: «A água do mar se levantará em turbilhão contra eles e os rios os arrastarão impetuosamente. O vento insurgirá contra eles e os dispersará como um furacão» (Sab. 5,22). Não é difícil imaginar o que passou na mente dos discípulos. E ainda mais se considerarmos a superstição da época segundo a qual a terceira e quarta vigília da noite eram os tempos do demônio.
Eis então uma segunda dimensão da fé que o Evangelho nos dá: a maturidade da fé não acontece com as coisas admiráveis por todos, mas quando se têm a certeza de que o Senhor nunca está longe, nunca abandona, ao contrário, mesmo que o sentimento que parece dominar é o de abandono, é Jesus que vai ao encontro da sua pequena comunidade de homens de fé, mesmo que estes se sintam sozinhos e à mercê do demônio, das ondas, das trevas. Jesus não nos deixa sozinhos, mesmo quando não sentimos a sua presença. Cada vez que nos encolhemos por medo, a voz de Deus vem repetir sempre: «coragem, não tenha medo». Esta é fé madura, é a experiência da própria insuficiência, mas a capacidade de ainda ouvir palavras de amizade e força.
Durante a noite tudo muda, durante a noite aparecem aqueles medos que estão escondidos no mais profundo da nossa alma; durante a noite da nossa fé é difícil distinguir o que vem de Deus e o que pode ser um demônio, um «fantasma» daqueles que dominam os nossos instintos, que atentam à felicidade; fantasmas que escondemos mas que voltam sempre com toda a sua força destruidora. Como é difícil reconhecer as coisas quando é noite! Por outro lado, se eles não tivessem demorado tanto em sua satisfação… Muitos dos nossos medos aparecem em toda a sua violência quando demoramos em acreditar, em obedecer, em confiar; é então que fazemos a experiência da nossa limitação, quando queremos, por pouco que for, determinar um caminho diferente daquele que Jesus nos propõe.
Por último, a pessoa de Pedro: a resposta mais bela e profunda da fé de um homem que havia entendido a lição. Claro que suas palavras não são um desafio a Deus, ao contrário, refletem a necessidade profunda de que a sua certeza seja confirmada: o “fantasma” é chamado «Senhor», mesmo na confusão entre a possibilidade de estar diante de um demônio; isto porque a fé faz enxergar além daquilo que os olhos vêem. A fé não é fideísmo cego, é uma dimensão profundamente humana e, como tal, precisa de confirmações. Jesus atende esta nossa necessidade autêntica, singela, contanto que não seja um desafio, o qual nunca terá respostas. A Igreja sempre distinguiu entre “dificuldade de fé” (o que é sinônimo de amor a Deus e desejo de estar com Ele conscientemente) e “dúvida de fé” (quando pretendemos reduzir Deus ao nosso critério impondo condições); a última nos conduz à solidão sem respostas.
É impossível imaginar em Pedro uma “dúvida”, pois ele está disposto ao risco, de antemão, antes que o Senhor o permita. E está disposto a enfrentar o absurdo: andar sobre a água! Isto é fé, estar dispostos de antemão, sem opor condições, sem receios sobre o futuro, sobre aquilo que “pode acontecer….”. Estar dispostos, antes mesmos que Deus diga o seu «Venha».
A fé não elimina as dificuldades, o medo do vento e das águas agitadas, a fé não aplaina os caminhos, simplesmente ensina a percorrê-los com Jesus, ensina a pedir, a confiar que o socorro está sempre ali, pronto; ensina a acolher a Sua mão estendida, sempre, sempre.

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