sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Festa da Exaltação da cruz (Pe Carlo)

Um gesto muito simples, ma atitude muito difícil: o sinal da cruz, que esconde a história de muitas pessoas que deram e continuam dando sua vida. Um gesto que acompanhou os primeiros mártires em seus últimos momentos, os navegantes rumo à descoberta de novas terras, os soldados que em nome desta cruz e do direito de podermo-nos identificar como cristãos perderam tudo, inclusive suas vidas. Sinal este que, como nenhum outro, afunda as raízes na identidade e na história de povos e etnias que, embora diferentes, se reencontram unidas na mesma experiência que supera as barreiras antropológicas, étnicas, culturais. Ontem vi no olhar de um jovem Albanês a altivez da última coisa que permaneceu viva num País ao qual, anos de ditadura atéia, tinha tirado tudo, inclusive sua identidade; ele dizia: «Nós... O sangue de nossos pais, foi o que permitiu ainda ao Ocidente permanecer cristão. Vinte e quatro anos de guerra para ter o direito de fazer o sinal da cruz. É algo que ninguém conseguiu tirar-nos». O mesmo orgulho o encontro toda vez que batizo um adulto. Para este, fazer o sinal da cruz representa mais do que um gesto costumeiro, significa sentir-se parte de uma história, de um povo que vai além de seu povo, significa sentir-se aceito por um Pai que o acolhe definitivamente e sem retornos, aconteça o que acontecer.
Gesto de contradição, exatamente como Jesus o propôs e os cristãos o entenderam: “A palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que se salvam, pra nós, é potência de Deus” (1Cor. 1,18).
È curioso notar como a maneira de fazer o sinal da cruz reflita muito bem o nosso relacionamento com Deus; há quem o faz furtivamente, quase se envergonhando, há quem ouve tudo o que pudermos dizer sobre Deus e Jesus mas se recusa em fazer o sinal da cruz, há quem o faz depressa como faz depressa todas as coisas enquanto a vida lhe escapa ao lado sem a saborear....
Mas o que significou para os primeiros cristãos a cruz ?
A liturgia de hoje nos oferece um testemunho, uma seqüência em uso nas primeiras comunidades cristãs. Provavelmente, devia tratar-se de um hino anterior ao escrito de Paulo e que ele retoma para recordar aos cristãos de Filipos, a lógica à qual eles decidiram aderir no momento que se uniram a Jesus com o Batismo. É uma lógica desafiadora e completamente contraditória aos princípios com os quais se regem as relações da maioria dos homens. Recorda aos cristãos quanto estes sejam depositários de algo que, realmente, é inovador porque inverte o pensamento comum.
“Tenhais em vós os mesmos sentimentos que foram em Cristo Jesus” são as primeiras palavras que introduzem o hino, isto significa que a cruz pode ser compreendida somente a partir dos sentimentos de Cristo e na medida em que tivermos no coração estes mesmos sentimentos. Logo, não é algo que pode ser compreendido com razões, não há como explicar para quem não crê o que significa este caminho que Jesus escolheu. Paulo não convida a “imitar” Jesus, não se trata de forçar a nossa vida para imitá-lo, é obvio que isto é impossível e, afinal, eu sempre me pergunto se a imitação de alguém seja realmente o caminho mais libertador. Toda vez que queremos imitar alguém, -embora isto seja uma etapa inicial também do caminho de aprendizagem de qualquer criança- de uma forma ou outra estamos deixando em segundo plano aquilo que é o específico com o qual Deus nos fez.
Paulo nos convida a que “tenhamos os mesmos sentimentos que foram em Cristo Jesus” ora, isto não se dá forçando a nossa vida, mas é resultado espontâneo de um processo longo e delicado. É uma adesão global e imediata a Cristo. Esta, alimentada, cuidada, amada como o tesouro mais precioso que possuímos, gera em nós os mesmos seus sentimentos. Quase uma simbiose, uma reciprocidade com a qual damos a Deus a nossa vida e Ele nos dá o Espírito de Jesus, isto é, o espírito que animava Jesus, que O fez aderir ao Pai até as últimas conseqüências. Alimentados por esta associação intima e dinâmica, nos é possível aderir e viver em nossa vida aquilo que Paulo chama “escândalo da cruz”. É por isso que viver a cruz não se improvisa nem é fácil.
Mesmo não desconsiderando toda a carga de dor do evento da cruz, contudo gostaria lembrar que não foram estes os sentimentos predominantes em Jesus; cruz não é direto sinônimo de sofrimento mas, creio, principalmente da profunda felicidade de ter aderido, “obedecido” (como diz Paulo) ao Pai, sabendo que isto se tornaria de algum modo, o caminho pelo qual o homem pudesse ver e constatar até que ponto se pode amar.
Entre tantos, Paulo nos aponta o sentimento da obediência, tanto criticada nestes últimos tempos, considerada por alguns como resquício de uma opressão que não deixa espaço à autonomia, à liberdade etc. Lembro quando, polemicamente, um livro trazia em seu título uma opinião teológica que afirmava: “A obediência não é mais uma virtude”, (naturalmente vendeu bem). Em que sentido a obediência de Jesus foi salvifica ?
Pois bem, é evidente que se por obediência se entende unicamente uma resposta quanto mais exata possível a um comando, “usque ad cadaverem” (“como um cadáver” segundo um dito medieval espanhol), creio que de fato não seja a melhor maneira de entender o ato de amor de Jesus, pois somente obedece assim quem é obrigado e onde há obrigação dificilmente se encontra o amor. Devemos pressupor outros sentimentos.
“Aquele que me enviou está comigo, não me deixou sozinho porque eu faço tudo quanto Lhe agrada” disse Jesus aos discípulos (Jo 8,29). Então o significado autêntico da obediência deve ser procurado acima de tudo na sintonia do coração não tanto nas palavras pronunciadas. Obediência implica bem mais. Para viver esta atitude é preciso ter uma profunda intimidade com a pessoa amada, a ponto de prevenir seus desejos, antecipar o que poderia faze-la feliz. È preciso conhecer os mais íntimos movimentos e seu coração e permitir que o próprio coração pulse ao uníssono com o coração daquele que se ama. É preciso saber escutar as palavras que ainda não foram pronunciadas.
Não é um momento nem um ato isolado com o qual se “cumpre a obediência”, antes, é a busca de duas vontades que, em vista de um valor superior, são capazes de superar a si mesmas e encontrarem-se. A obediência que salva, que desafia o mundo, a lógica incompreensível que responde, que não quer se afirmar a todo custo, se enraíza na profunda humildade, no caminho dos “pobres” e floresce na entrega confiante e amorosa de própria vida. Quem é capaz de entregar o faz porque sabe que o amor de quem recebe não é inferior. Sabe que não perderá.
È um caminho que não se improvisa, que se constrói aos poucos, renunciando ao próprio “eu”, como nos sugeriu São Paulo: “aniquilou a si mesmo” isto é o seu “eu” aderindo cotidianamente, passo após passo ao Pai. Um maravilhoso itinerário de amor que liga permanentemente, que funde os corações.

Nenhum comentário: