sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Assunção (Pe Carlo)

A festa de hoje celebra o desfecho do grande desejo de Deus. È a declaração última e definitiva ao homem que o sonho de Deus é possível; é possível não obstante todos os inimigos, as dificuldades e a fragilidade à qual o ser humano é submetido. A leitura do Evangelho nos envolve por um clima de alegria, alegria esta que é experimentada quando se vê o projeto de Deus realizado.
A festa de hoje tem origem relativamente recente, foi instituída pelo papa Pio XII em 1950, mas encontra suas origens numa convicção que afundava suas raízes nos primórdios da fé cristã.
Nascida inicialmente, de modo espontâneo no meio do povo cristão e meditada em seguida pelos Padres da Igreja, se afirmava a convicção de que, como Maria foi sempre unida ao filho Jesus em toda sua vida, partilhando intimamente e sem limites cada situação e atitude, da mesma forma esta união continuaria também ao findar dos anos de Maria. Na antiguidade cristã não encontramos testemunhas, fatos, cultos, orações que nos digam algo a respeito da morte de Maria, contudo, em lugar destas, temos uma documentada tradição que fala de uma “dormição” de Maria. O transpasso desta para a outra vida não é descrito em termos de uma morte análoga àquela que experimentamos todos nós, mas de forma diferente, quase um “adormecer” tranqüilo, entregar-se nos braços Daquele que a abraçou com “sua sombra” . Sem ruptura de continuidade entre esta e a outra vida que nos é destinada como oferta gratuita desde a fundação do mundo.
Um privilégio ? Sem dúvida, mas não algo que esteja fora da lógica do projeto de Deus como nos é descrito desde o início da Sagrada Escritura, projeto válido para todos e cada um dos homens; que, aliás, deveria se realizar para todos uma vez que o pecado não tivesse espaço na vida. Digamos que em Maria, mais uma vez, Deus consegue realizar o seu desejo de ter como interlocutor um homem livre, confiantemente entregue, capaz de receber tudo como dom: a vida e a morte.
Tentemos debruçar-nos, por alguns momentos, sobre quanto as Escrituras nos dizem a respeito, para podermos apreciar a festa de hoje e agradecer a Deus que, em Maria, nos antecipa o destino do homem de fé.
Em primeiro lugar é preciso livrarmo-nos de alguns esquemas preconcebidos, dos quais não temos culpa, mas que nem sempre nos ajudam a entender as linguagens da Escritura. Implícita ou explicitamente, a idéia de “céu” nos reconduz à idéia de “lugar”, mesmo se tenhamos já abandonado a visão “física” deste lugar. No entanto, somente em alguns trechos ligados às primitivas formas religiosas do povo hebreu, “céu” é ligado a um “lugar”, na maioria dos casos, com o amadurecimento religioso da fé, “céu” indica a condição na qual se encontra Deus, em contraste com a condição na qual se encontra a vida humana. Ou seja: condição de infinito e condição de limite, condição de plena realização e condição de fatigoso caminho... e a assim por diante. Logo, dizer que Maria é Assunta ao “Céu” indica reconhecer que n’ Ela se realizou o projeto desejado por Deus, o sonho de ver a sua criatura amada a seu lado eternamente, feliz e grata. Maria, humana como todos os homens, na qual não havia divindade por natureza, assume a posição que é oferta a cada homem que crê: receber como dom a divindade que não tem por sua constituição natural. A nossa festa nos diz que isto é possível !
A palavra “assunção” tem procedência e significado um pouco mais complicados, espero conseguir transmiti-lo.
No livro de Gênesis (cap. 5), há uma lista de “patriarcas” que vieram depois do primeiro homem. Todos eles são descritos por meio de números simbólicos, com pessoas que viveram 900,800,600 anos; a enumeração de seus nomes termina sempre com a expressão: “sua vida foi de.... anos, depois morreu”. No entanto, existe um personagem, Enoque, do qual não se usa a expressão “morrer” e esta é assim substituída: ”E Enoque andou com Deus; e não apareceu mais, porque Deus o tomou para si”. Algo de análogo se diz também no 2º livro de Reis (cap. 2) em relação a Elias, outro homem que não viveu a morte como experiência de morrer, mas que foi levado num “carro de fogo” (note-se que o “fogo” é a representação figurativa da idéia de “presença de Deus”). Em ambos os casos o significado é mais ou menos o seguinte: Deus continuou neles o que eles haviam tentado viver em suas vidas, deu pleno cumprimento à finalidade que eles tinham se proposto como sentido de sua existência. È o que Ele fará com todos os que decidirem profundamente, como Maria, orientar suas vidas para a doação incondicional, alegre, confiante a Deus.
O que se deu em Maria sem dúvida foi um privilégio, mas um privilégio que tem profundas raízes bíblicas e merece toda a consideração necessária; realmente é triste sinal de escravidão a atitude preconceituosa daqueles que desdenham Maria fazendo d’ Ela uma “peça secundaria” do projeto de Deus.
E mais ainda.
Um dos ensinamentos mais claro quanto ao projeto de Deus é que Ele “Não criou a morte e não tem algum prazer na destruição daqueles que são para a vida” de fato, Deus “Criou tudo para a existência, as criaturas são sãs, não há nelas o veneno da morte” (Sab. 1). Deus é Deus da vida, a morte não tem espaço n’ Ele e naquilo que Ele faz. Não creio que seja justo dizer: a morte é natural, não é verdade, se assim fosse seria terrível e insignificante a nossa vida. A morte não é natural, por isso que instintivamente sentimos repulsão e medo. Um trecho do mesmo livro da Sabedoria nos ilumina: “Os ímpios invocam sobre si a morte com gestos e palavras”. Logo, perece que a idéia de morte na Escritura não se identifique imediatamente com a idéia de “duração”, isto é o tempo em que a nossa natureza nasce, cresce, se desenvolve e termina suas funções, parece quase ser uma “estado de ânimo” ou, diríamos hoje, uma situação existencial. “Vida” significa proximidade de Deus com todas as conseqüências; morte é distância de Deus (na linguagem Bíblica: pecado) com todas as conseqüências que são tristeza, medo, frustração etc. Pois bem, ainda o Livro da Sabedoria (cap.2) diz que “Os que pertencem ao demônio fazem experiência da morte”. Obviamente todos terminam seus anos, não precisa pressupor uma supernatureza nem para Maria. Quando a vida é vivida em sintonia com Deus, o momento em que definham os nossas forças não é vivido como uma “experiência” de ruptura, de fim de todas as expectativas, termino das esperanças... Os que optaram pelo estilo de vida proposto pelo “demônio”, isto é o egoísmo – nos diz este trecho - no final farão “experiência” do último momento como trauma, medo, desespero, pois é o dia que põe fim à soberba e presunção humana.
Maria soube escolher na vida. Para ela, por primeira se realizou o que Deus tinha preparado para todos os seus filhos. A Ela, primeira entre os que crêem, se podem aplicar as palavras de Paulo aos Corintos : “Oh morte, onde está a tua vitória ?”.
Aprendamos hoje a fazer a escolha certa, para que o último momento, aquele da verdade, seja um abraço do Pai.

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