quinta-feira, 17 de abril de 2008

5° Domingo da Páscoa (Pe Carlo)

Envolvidos com a alegria da Páscoa que ainda ressoa em nossos corações a liturgia já nos faz pressentir que esta sensação, feita de alegria pela vitória de Deus sobre os projetos do poder constituído e sobre toda presunção, é um sentimento intermediário; essencial, sim, mas não único e absoluto. Trata-se de uma situação semelhante à de Maria de Mágdala, a qual instintivamente queria segurar o “seu” Jesus do mesmo modo que o havia conhecido, mas isto não era possível. A Ressurreição havia já instaurado novos tempos que não permitiriam mais que o Senhor permanecesse conosco do mesmo modo que anteriormente. A Páscoa de Jesus foi bem mais que a revivescência de um cadáver (que ninguém viu), como no caso de Lázaro; foi o início de um novo tempo no qual Jesus continuaria estando entre os homens e com o Pai, numa relação diferente e nova mas não impossível para a nossa compreensão; uma dimensão da qual fazemos experiência, sem contudo conseguir enquadrar em nossos esquemas, quando vivemos a dimensão eucarística da nossa vida cristã. Eis, então que este domingo nos recorda as palavras de Jesus ao findar da última ceia; palavras de despedida, mas que deixam aberta uma outra perspectiva incompreensível naquele momento. É difícil entender este trecho do Evangelho de João se não levarmos em consideração quanto precede as palavras que acabamos de ler, aproximemo-nos com paciência e respeito.
João não narra a instituição da Eucaristia, como o fazem os outros três Evangelistas já que, na época em que ele escreve, a liturgia eucarística estava bem afirmada em todas as comunidades cristãs; sua celebração já tinha sido orientada corretamente e purificada de algumas interpretações errôneas por Paulo e os outros colaboradores dos Apóstolos. A praxe do Batismo e a catequese que o precedia se preocupavam também de explicar a celebração da “fração do pão”. Por isso João preocupou-se mais de penetrar o sentido misterioso que o Senhor havia associado àquele gesto; sentido que teria a sua plena realização e compreensão com a Páscoa. É nesta linha então, que procederemos.
Três momentos merecem ser lembrados. Naquela noite, Jesus havia substituído o gesto de “se lavar as mãos”, sinal da religiosidade judia do caminho de purificação, com o gesto de “lavar os pés de outros”, sinal do amor-que está-ao-serviço, o símbolo de um novo caminho, que Jesus propunha aos que desejariam trilhar o seu mesmo caminho.
E ainda, mesmo o Senhor sabendo que Judas O deixaria e passaria a enrijecer-se na sua posição, mesmo assim deu a Judas aquele pedaço de pão de tanto valor simbólico, pedaço que um pai dava ao filho mais necessitado em sinal de que estaria sempre ao lado do próprio filho, mesmo quando este não pudesse mais se alimentar.
Por último, diante do espontâneo gesto de fidelidade de Pedro, Jesus recorda que não é suficiente um sentimento momentâneo; Pedro sentiria o amargo sabor da derrota dos sentimentos, então compreenderia que somente uma escolha radical poderia fazer dele o “pastor” ao qual Jesus entregaria o seu rebanho.
Do ponto de vista dos discípulos tudo isto se transformava em “perturbação”. O que parecia certo não o era mais, o que parecia forte não o era, o que estava garantido...
A resposta de Jesus visa imediatamente infundir aquela segurança da qual os discípulos precisam, mas se abre às outras realidades misteriosas que a Eucaristia traz consigo. «Tendes fé em Deus, tende fé em mim também»; este texto, como é próprio do Evangelista, pode ser lido de duas maneiras diferentes na língua original. A primeira é como que uma exortação para continuar na fé em Deus e em Jesus. A segunda é uma afirmação: Jesus constata que eles têm fé em Deus, uma fé que ele experimentou ao longo de anos de convivência, reconhece o valor de todo um caminho feito, por isso exorta para continuar a “crer Nele”. Eis então que descobrimos uma primeira lição: quando as situações estão complicadas e não perecem ter saída, quando parece que ninguém vê os dramas que vivemos, Jesus nos diz: “eu estou vendo, não se preocupe, nada é em vão”. A coragem de continuar freqüentemente nasce quando sentimos que uma pessoa que nos ama vê, reconhece, sabe do que se passa dentro de nós e, por isso, continua acreditando em nós. «Fazei isto em memória de mim»... dizia pouco antes Jesus. Fazei isto: entrai no coração do outro, se quiserem reviver e entender, depois que eu vos tiver deixado, o que o pão e o vinho significam!
Na linguagem do Evangelista é comum encontrar a distinção entre “crer a...” (ou seja, crer às palavras ou atos de alguém) e “crer em...”. Esta segunda expressão é mais carregada de significado. “Crer a...” significa dar um crédito com a nossa mente. “Crer em...” significa penetrar dentro da vida de alguém de modo a não precisar mais de um “consentimento intelectual” mas a comunhão estabelecida com o tempo e as atitudes, se torna o motor de qualquer ato o qual brota simples, espontâneo, criativo. Fruto de dois corações que sentem a mesma coisa, que querem a mesma coisa, que se fundem um no outro, perdendo-se e reencontrando-se sempre um no outro. Isto é comunhão, isto é Eucaristia. Diariamente a Igreja nos recorda que se crê “por Cristo, com Cristo e em Cristo”; os primeiros cristãos eram batizados “em nome de Cristo”, para indicar o caminho que o fiel faz, lado a lado, coração com coração, vida com vida, com Jesus, presente na comunidade de fé.
É compreensível que desta maneira de falar de Jesus surgissem questionamentos; Jesus não estava propondo uma nova religião, mas uma nova maneira de existir com Deus. Até então as visões religiosas sempre haviam associado o “paraíso”, a vida futura, com um bem-estar; este seria tanto maior quanto mais a alma estivesse localizada perto da divindade; a felicidade seria tanto maior quanto mais a alma conseguisse alcançar uma condição que fosse “mais perto” possível daquela de Deus. Em suma, religião era a conquista de um “lugar” na outra vida. A isto responde João com mais um artifício literário com o intuito de transmitir-nos os sentimentos de Jesus: «Na casa de meu Pai há muitos lugares» (monai pollai eisin). O vocábulo usado pode significar contemporaneamente duas coisas: tanto um espaço, em sentido de “lugar”, quanto “uma condição, uma maneira de estar permanentemente” (do verbo menw, que significa “estar sempre presente”). A possibilidade de interpretar de duas maneiras diferentes faz parte da lógica do Evangelista para o qual existem duas categorias de pessoas: aquelas que somente vêem o que se apresenta imediatamente e aquelas que vêem o “mistério” escondido por baixo daquilo que os olhos vêem. Deste modo o Evangelista diz, a quem quer ouvir, que para Jesus a fé cristã não se extingue em cumprir atos religiosos, mas é uma “maneira de estar, permanentemente, onde está Deus, com Ele”. A este ponto é cabível também a pergunta de Tomé que poderemos resumir assim: “afinal, onde está Deus?”; “qual é a sua casa?”, “qual é o lugar Dele?”.
Creio que seja um esforço pouco produtivo procurar uma resposta em algo circunscrito, como se fosse um lugar onde apontar os nossos esforços; Jesus nos precaveu muito desta atitude (Mt. 24,17). Talvez, se nos perguntássemos qual é o “lugar” que Ele ocupa na nossa existência, nas nossas decisões quotidianas, talvez, o caminho estaria mais correto, poderíamos conhecer a qualidade da nossa relação com Deus, se é permanente, se é transitória...
Jesus sabe que os nossos corações não estão prontos para morar “permanentemente” com Deus.Todo dia a nossa vida nos diz esta verdade, nos revela que o nosso coração está momentos com Ele, momentos conosco, momentos com ninguém. Se Jesus “vai para o Pai” é para preparar este “lugar”, para fazer com que a sua presença em nós, mais profunda do que a sua presença histórico-geografica, possa gerar aquela atração para o infinito, aquela atração de amor capaz de tomar completamente o nosso coração. E assim, movidos por este impulso de comunhão mais profunda do que nós a nós mesmos, possamos sentir a “saudade do Céu” (S. Agostinho), aquela atitude que atrai para o “lugar” onde Jesus está; atitude capaz de orientar todas as decisões em uníssono com o coração de Jesus. É uma eternidade que começa hoje. Assim é a Eucaristia que celebramos, é um elo de encontro entre o infinito e o tempo, é um momento no qual podemos aprender a “estar” com Deus, com o coração de Jesus.
Creio que aqui mereça uma breve consideração a seguinte expressão de Jesus: «voltarei e vos tomarei comigo ». Às vezes alguns traduzem “levarei comigo”; deste modo a ênfase é dada a um tipo de relação com Jesus que projeta o homem para fora do mundo, num outro “eone”, numa outra existência, enfim num paraíso desconhecido. Mas não é assim, literalmente o verbo (paralambanw) significa “tomar para si”, “estabelecer comunhão”; é isto que Jesus está disposto a oferecer aos discípulos, para que eles tenham em si a mesma comunhão que o Filho tem com o Pai, para que aprendam a “estar” a “viver a presença de Deus” assim como Jesus a viveu e a vive eternamente. Uma comunhão que não abstrai o homem do seu meio, mas, ao contrário, lhe faz sentir dentro do seu mundo aquilo que Jesus sentia no meio das pessoas, que amava. Viver a Eucaristia é então bem mais do que a nossa decisão de cultuar a Deus num determinado modo, de participar de um rito, mas é dizer “sim” à oferta de uma nova qualidade de vida; é aprender passo a passo a estar em comunhão, para que esta seja o mais possível análoga àquela que Jesus tem para como Pai. Só assim será possível refletir o rosto de Deus para aqueles que buscam sentido na própria vida.
Por fim, a pergunta de Tomé nos reconduz à origem de todas as considerações que fizemos. «Como podemos conhecer o caminho?» Na época, não era muito diferente de hoje quanto às propostas religiosas que, inspiradas pelo gnosticismo e por doutrinas místicas orientais, buscavam “alcançar” a Deus por um caminho “iluminado”. Tratava-se de um puro esforço do espírito que se eleva através de técnicas, métodos etc. até alcançar a pureza em Deus. Obviamente a resposta de Jesus é uma aberta contradição a este modo de proceder. Com suas palavras o Senhor parece dizer: “vocês conhecem o caminho, já o trilharam, já sabem o que eu fiz para os homens mais fragilizados, injustiçados, esmagados sob o peso de leis desumanas, de preconceitos...” este é o caminho: ser o que Jesus foi para todos, para os homens e para o Pai. Este é o caminho, é objetivo, aberto, visível, capaz de perder, não fechado em egoísticas sensações mascaradas de religião. Atitudes estas que se reconhecem nos três gestos simbólicos mencionados acima, e que devem estar presentes em todo homem: o serviço aos outros e não a si mesmo (lavar os pés e não as próprias mãos), amar com amor fiel até a pessoa que decidiu trilhar um caminho diferente daquele de Jesus (o pedaço de pão que Jesus deu a Judas), não confiar demasiadamente em si mesmos (Pedro) mas naquilo que Jesus pode fazer em qualquer um de nós que esteja bem-disposto e fiel.

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