sexta-feira, 3 de agosto de 2007

18° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

O capítulo 12 do Evangelho de Lucas do qual é extraído o trecho de hoje, apresenta duas atitudes justapostas, uma diante da outra: aquela do discípulo autêntico que assimila a sua vida à de Jesus, e por isso é confiante na Providência, e a postura do homem que aparentemente reconhece a Deus, mas de fato age sem O levar em consideração. A confrontação não se dá somente entre duas mentalidades, mas ambas postas diante do evento que acomuna todos os homens, que é a morte. Como acontece freqüentemente, Jesus usou um fato do dia-a-dia para nos introduzir mais e mais no estilo de vida que caracteriza a pessoa que vive com amor a relação com Deus. A ocasião é dada por dois irmãos postos diante de uma herança.
Conforme a legislação judaica o primogênito possuía por direito a inteira herança do pai; contudo, com base em Dt. 21,17, uma terceira parte da herança podia ser dividida entre os outros irmãos, mas isto não era obrigação. Nomeadamente acontecia que, após a morte do pai, de fato o primogênito não dividisse a herança, gerando assim divisões na família, fato pelo qual o Salmo, em tom de auspício, exorta: «Como é bom quando os irmãos vivem juntos...» (Sal. 133,1). Foi uma situação como esta que se apresentou a Jesus. Alguém, indistinto no meio da multidão apelou a Ele. O fato é um pouco estranho pois Jesus era um leigo, nem um rabino nem um sacerdote e, por lei, cabia a estes últimos fazer justiça em contendas, não a um leigo. Se deduz que, é bem possível que quanto o homem procurava não fosse realmente a solução de uma questão, mas uma autoridade moral sobre a qual fazer alavanca para forçar seu irmão a dividir a herança. Digamos que precisava ouvir uma palavra que lhe desse as condições para requerer, em nome do Deus apresentado por Jesus, aquilo que lhe interessava de fato. A este propósito nota-se que a palavra usada para indicar a “herança” literalmente significa: “o que me cabe por lei de justiça”. Evidentemente aquela pessoa associava a “justiça” com a “repartição de bens” (obviamente não sem um interesse particular) usando a Escritura como ponto de apoio moral. Estamos já diante de uma distorção da idéia de “justiça” segundo as Escrituras, pois o conceito de “repartição de bens” é muito tardio e forçado pela influência da dominação grega. “Justiça”, na mais singela tradição da Escritura é bem mais que isto. Sendo assim, o apelo a Jesus se revela como uma típica instrumentalização da sua pregação. É, este, um fato que ainda hoje se repete toda vez que usamos das palavras da Escritura para finalidades que pouco tem a ver com o autêntico desejo de Deus; trata-se uma tentação para a qual nos adverte ainda hoje o Catecismo, quando nos recorda: “Não tomes Seu santo Nome em vão...”. Afinal, quanto é delicado o limite entre servir a Deus e se servir de Deus! É esta segunda intenção que Jesus depreca; o Senhor não quer sujeitar-se ao jogo dos interesses privados: «Homem, quem me constituiu juiz ou mediador dos vossos bens?».
O trecho nos apresenta um paradoxo: aqueles que são constituídos irmãos por natureza estão divididos por causa de uma herança, a qual, contrariamente ao ocorrido, deveria servir para manter a unidade da família. Conforme o uso da época, a herança deveria ser um patrimônio que o pai deixava não como posse privada, mas como garantia do sustento e perpetuação da família. O primogênito, com a herança, recebia também a incumbência de acudir à família inteira, ao seu sustento, à proteção da mesma e tudo quanto fosse necessário. O patrimônio, logo, era algo “dado”, dado em função do bem do inteiro clã. Deste modo, aqui é preciso ver não somente a cobiça de um indivíduo encoberta por uma justificativa, mas a incapacidade daquele tal de manter-se agregado à sua família. É preciso ver a indisposição a entregar suas necessidades ao irmão primogênito; enfim, o desejo de constituir uma vida autônoma, sem aquela ligação tão importante para o mundo oriental que era a família. Para esta tinha sido dada a “herança”. Estamos diante da imagem de um homem que não é capaz de confiar, que prefere possuir algo que lhe dê o tipo de segurança que deseja, do que ter a certeza de que não ficará desamparado. É o oposto do discípulo, o qual não precisa possuir bens que sirvam para preencher os vazios de insegurança que nascem quando somos incapazes de confiar em alguém. O discípulo acredita em Deus, acredita que Ele é o Pai misericordioso e providente de Jesus, um Pai do qual não precisa fugir para encontrar na autonomia a própria segurança.
Nota-se na expressão: «vossos bens», a profunda desaprovação de Jesus à curta visão do homem o qual considera os “bens” como sendo “o que cabe por lei de justiça”. Os “bens” são algo “vosso”, diz Jesus. “Bens” são exatamente o que Jesus não pode dar, “bens” são o que está em poder do maligno oferecer, como está claro em toda a pregação de Jesus. “Bens” são o que divide irmãos, o que divide aquilo que Deus criou unido; “bens” desencadeiam um processo de posse infindável, uma vez que esta avidez –como sabemos pela psicologia- é ligada a um inconsciente desejo de superioridade, que serve de compensação à insegurança de uma pessoa que não se sente amada ou que se fecha em seu mundo particular por várias razões. Diríamos nós, com um ditado popular: “tampar o sol com a peneira”.
Os “bens” são o oposto daquilo que Jesus veio para dar.
Seguindo a tradição bíblica, “herança” é inicialmente um termo associado à Terra Prometida (cfr. Gen. 15,7) mas que posteriormente é compreendido em seu significado maior e identificado com a Promessa de Jahvé em sentido mais amplo. A Promessa é a resposta a tudo o que abrange os anseios mais profundos do homem quanto à existência, ao sentido de viver, ao binômio vida-morte dentro do qual se move a sua realidade... A esta resposta corresponde o Reino anunciado por Jesus. O Reino é a herança, segundo os profetas e segundo Jesus. O “Bem” que Deus dá é o cumprimento da Promessa, em Jesus. Ele é a “Herança” no entender dos Evangelhos e dos outros escritos do Novo Testamento; creio que possa ajudar, neste sentido, a leitura de Ef. 1, realmente muito rica de significado.
À atitude daquele homem, Jesus contrapõe uma curta parábola que encontramos também em outros escritos da antiguidade cristã, como no Apócrifo “Evangelho de Tomé”.
O correto uso dos bens que temos à disposição sempre foi um assunto muito caro a Lucas. Na exposição que ele faz desta parábola não condiz ver seu núcleo na iminência da morte que pode sobrevir como uma calamidade sobre o homem. Evidentemente não podemos pensar Jesus como um pregador apocalíptico o qual desdenha todos o esforços que o homem faz para melhorar sua condição. O mundo dos homens não é algo que será completamente suplantado pela morte e substituído por um “outro mundo”. Tal visão é profundamente alienadora enquanto desenraiza o homem do seu mundo e o projeta num mundo que não existe a não ser na imaginação. A questão é outra: qual é a atitude que corresponde a um uso correto dos bens que seja o mais possível adequado à orientação de Jesus?
A imagem é a de um proprietário terreiro que viu uma colheita superior a qualquer expectativa. Na narração encontramos o uso da expressão: «deu muito fruto». Reforçando deste modo o caráter de “dom” que a abundante colheita tem, Jesus se ligava com o caráter de “dom” que a herança tem. Ela não é um “direito de lei” como entendia aquele individuo, mas sim um dom, algo simplesmente dado. Também nesta parábola o sujeito esqueceu que a abundância é dada e, por quatro vezes repete: «minha colheita», «meus celeiros », «meu trigo», « meus bens». Assim como o primeiro homem também este segundo fica à mercê do insaciável desejo de possuir, iludindo-se de encontrar aquela segurança que o deixaria feliz. A parábola gira em torno de uma expressão muito querida por Lucas: «O que farei?» (cfr. Lc.3,10.14;10,25;16,3 etc). É a pergunta do homem diante de sua vida e de sua morte, é a pergunta que nasce da liberdade de poder orientar a própria vida. Esta pergunta se desencadeia com maior força quando acontece algo inesperado, tanto que seja bom quanto que não o seja. Aqui então o questionamento é sobre o que fazer com tudo o que Deus dá a mais do que o esperado. Saber escolher corretamente pode modificar a vida de uma pessoa. Infelizmente o agricultor não conseguiu, não soube definir um limite, não soube dizer “basta”, tudo foi interpretado como “direito dele” (o que no entanto não é errado); o problema é que foi interpretado “somente” como direito dele. E assim fez a opção que o discípulo não faria: escolheu para si. Deste modo perpetuava em si mesmo a prisão que nasce do medo do amanhã, escolhia a não liberdade, escolhia derrubar o que tinha, somente para fortalecer o seu medo do futuro.
Não é assim quando uma pessoa tem um relacionamento maduro, autêntico com Deus. Um relacionamento como entre pessoas que “sabem” o que uma deu par a outra e por isso não podem duvidar minimamente do laço gerado.
Ao contrário daquilo que o homem pensava, na vida do discípulo o que dá segurança não nasce da posse nem do controle de bens, mas sim da capacidade de entregar, de dar. Nasce da reciprocidade. Pois somente esta qualidade caracteriza plenamente Jesus uma vez que é infinita assim como no interior do próprio Deus. É um intercâmbio continuo que se supera sem fim por amor. A posse insaciável, a incapacidade de dizer “é suficiente”, “não preciso”, é um dos sintomas mais claros de que algo não está certo na nossa relação com Deus e com as outras pessoas, nossos “irmãos”. Com certeza muitas podem ser as justificativas; são frases como: “mas isto serve para...”, “vou fazer...”, “é para obras de bem...” etc. No entanto, é preciso ser sinceros: quanto de tudo isto é realmente dito com desapego? Quando a incapacidade de dizer “basta” na verdade esconde problemas sérios de relacionamento com Deus e consigo mesmos?
Esta posição ambígua é muito bem expressa com o atributo: «Insensato» que é dado ao agricultor. O significado histórico desta expressão se encontra reiteradamente no Antigo Testamento quando se quer indicar o homem que, teoricamente acredita em Deus, seu comportamento aparentemente mostra um aspecto daquilo que ele é; de fato, depois, quando escolhe, quando decide o que fazer, toma uma decisão prescindindo de Deus, não O levando em consideração. É o homem que tem como ponto de referência as suas próprias decisões, sensações, projetos; assim por exemplo o Sal. 14,1: «Diz o insensato em seu coração:“Deus não existe”», Sal. 74; Jer. 5,21 etc.
O resultado desta atitude ambígua é muito simples: um vazio perante Deus e perante si mesmo. É isto que resta quando o Bem é confundido com “os bens”.

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