sexta-feira, 8 de junho de 2007

10° Domingo do Tempo Comum (Pe Carlo)

Naim, uma pequena cidade a 10 km de Nazaré à encosta do monte Moré não era na época de Jesus uma meta para um viandante. Só casualmente ou por motivos de força maior um viajante desviaria do seu caminho para entrar naquela pequena aldeia, cujo nome significa “graciosa”. Parece difícil pensar que Jesus tivesse como meta a aldeia de Naim, tratava-se, provavelmente de um desvio ocasional de caminho. Mas aquilo que poderia ter sido simplesmente um fato fortuito acabou transformando-se num dos principais gestos revelativos, colocado por Lucas logo no início do ministério de Jesus, antes da viagem rumo a Jerusalém. Nota-se imediatamente que o Evangelista não escreve: “Jesus” mas sim: «o Senhor». Isto não é uma acaso, em seu Evangelho, pela primeira vez Lucas deixa de referir-se a Jesus com o seu nome próprio e o substitui com a expressão «o Senhor». Esta tinha sido usada em outras partes do Evangelho mas sempre referida a Deus-Jhavé ou como título honorifico de alguém que se dirigia a Jesus com respeito; nunca em sentido próprio, como se fosse o nome de uma pessoa.
Sabemos que a comunidade cristã primitiva dava um grandíssimo relevo à palavra “Senhor”; esta era usada no mundo grego-romano somente para indicar o vencedor de uma campanha militar ou, em última instância para indicar o Imperador. Entende-se então o valor de forte pregnância alternativa e desafiadora ínsito no fato de os primeiros cristãos começarem a chamar “Senhor” o Cristo Ressuscitado. Assim fazendo eles confessavam que Cristo era o verdadeiro “Senhor”, em oposição aos falsos “senhores” do mundo que se impõem com os mais variados instrumentos de poder. Jesus, vencedor definitivo da “guerra” entre o mundo da morte e o da vida, Senhor do conflito que é dolorosamente sentido em todos os níveis da existência humana... é isto que iremos encontrar no texto de hoje.
O trecho sobre o qual estamos refletindo se apresenta mais como uma confissão de fé, do que como a simples narração de um episódio; visa manifestar o que Jesus é para o homem e para o mundo. Esta será a nossa chave de leitura, pois, de outra forma, a interpretação não passaria de um episódio que esgota seu significado atribuindo a Jesus um poder de curas e milagres... e nada mais. Vejamos o que o Evangelista nos diz.
Como parece, o desvio para Naim é aparentemente casual, no entanto, sugere a maneira com a qual Jesus entra em nossa vida: às vezes por fatores inesperados, circunstanciais... não importa, o que importa é que acontece um encontro, e este se torna decisivo. Em favor desta leitura, a do caráter decisivo do encontro, está o fato de que, intencionalmente, Lucas indica qual é o lugar do encontro. Quando se fala de “porta da cidade” vem à nossa mente a imagem de uma cidade cercada por muros com uma -ou mais- porta de entrada. Contudo, nenhuma escavação arqueológica realizada até agora trouxe à luz algum vestígio de que a cidade tivesse muros perimetrais; isto significa que precisamos ler a indicação de Lucas sob outro prisma. Vem em nosso auxilio o Antigo Testamento; a “porta da cidade” era o lugar onde eram realizados os julgamentos (veja, por exemplo Dt. 22,15; Jo. 5,4 etc.). À porta da cidade decidia-se se o homem imputado fosse culpado ou não e, com isto, se tivesse ou não o direito de participar da vida da cidade. O Julgamento final era também imaginado à “porta de ouro” que de Jerusalém dá para o Vale do Cédron. Assim sendo, o encontro com Jesus é, para o Evangelista, o julgamento definitivo, o momento em que se decide a sorte de um conflito entre o que atormenta o homem e o que o salva. É um encontro que acontece inesperadamente, a qualquer momento de nossa vida, sem pré-aviso e que pode modificar completamente a nossa existência.
Ali, para “a porta a cidade”, avançava um cortejo, carregado de toda a sua desolação, figura da vida humana que inexoravelmente vai na direção da “porta da cidade” com todo o seu fardo de sofrimento. É a humanidade carregada de um peso que sozinha não consegue suportar e do qual não encontra sentido. O cortejo fúnebre é a figura de uma vida que carrega em si, como por um macabro jogo, a sua própria morte. Esta contradição tem sido objeto dos principais questionamentos desde as primeiras formas religiosas que conhecemos na história da humanidade; inúmeras têm sido as tentativas de respostas, na maioria dos casos não passam de vagas maneiras de eternizar aquilo que gostaríamos que não terminasse. Mas esta atitude nada mais é do que fuga do drama da morte! É preciso recordar a nós mesmos que a morte existe, que convivemos com ela e que ela é desumana pois não condiz com a dignidade do homem. A morte percebida como fim é um trauma, um trauma que toca as convicções mais profundas de qualquer pessoa. Por outro lado, paradoxalmente, somente sabendo e tendo consciência de que há um “ultimo momento” (!) é que levamos à sério cada fato e situação da nossa vida, pois o “último momento” nos diz que “este” é o último e que não existe a possibilidade de adiar indefinidamente decisões, atitudes, relações... A morte nos recorda a seriedade da vida, a responsabilidade de viver e a pregnância da existência.
A leitura nos coloca diante de uma procissão que carrega a morte até o limite da cidade, um cortejo de pessoas convencidas que este é o destino das coisas. Um cortejo de quem não espera mais nada, onde o limite da cidade corresponde ao limite das expectativas. “Terra de esquecimento” (Sal. 88,12) era chamada a terra do sepultamento: após o último gesto piedoso do enterro nada mais restaria do que a lembrança e o paradoxo da não-vida.
Além do sofrimento devido ao sentimento de perca da pessoa amada, o Evangelista faz questão de indicar como uma cultura que é incapaz de ver a morte por aquilo que é, gera injustiças, solidão, incompreensão. Era assim em Israel na época de Jesus; embora existissem leis que teoricamente deveriam proteger as viúvas, isto de fato não ocorria, principalmente se a viúva não tivesse um filho que assumisse as defesas dos seus direitos públicos. À dor acrescentava-se a injustiça sobre os mais fracos.
Na época, o falecimento de uma pessoa era um fato social: «Grande multidão da cidade a acompanhava», diz o Evangelista. Toda a cidade se sentia envolvida no evento e participava como que numa liturgia onde cada grupo de pessoas assumia uma função: algumas mulheres choravam gesticulando e produzindo um som característico ao tocar os lábios com a mão e movimentando a língua com uma freqüência regular; alguns homens cantavam e outros tocavam instrumentos musicais. O defunto era carregado sobre uma tábua (não “caixão” –como alguns traduzem) e envolvido com uma mortalha branca, como ainda hoje se faz entre os Palestinenses. Os sentimentos de um cortejo fúnebre são bem representados por estas palavras do Salmo: «...Os meus olhos desfalecem de aflição; venho clamando a ti, Senhor, a ti levanto as minhas mãos. Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar? Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos?» (Sal. 88,9). Perguntas e perguntas com um vazio diante de si. Ao menos não se fingia diante da morte, hoje, infelizmente temos medo de olhar para ela, temos medo que as nossas crianças vejam um defunto –e damos inúmeras justificativas (quando, bem no fundo, a criança sabe como superar o impacto, mas não é o mesmo para o adulto); exorcizamos a morte tornando-a um fato banal através de filmes e noticiários sempre mais propagandísticos, de super-heróis que nunca morrem. Mas o fato é que temos medo de tocar a morte porque perdemos o sentido da vida.
No limite da porta, este cortejo se encontra com outro cortejo: Jesus e os seus. Não é difícil ver aqui a intenção de Lucas de indicar Cristo com a sua igreja, feita de discípulos –mais estritamente ligados- e de multidão indefinida. É no encontro com este segundo cortejo que as coisas mudam. Imediatamente o Evangelista apresenta Jesus com os traços que O caracterizam: «O Senhor teve compaixão». Compaixão é sentir os sentimentos do outro e vive-los “junto” com o outro. É não julgar de fora as situações mas “de dentro”, colocando-se no lugar de quem as está vivendo. Assim, Lucas nos apresenta Jesus como aquele que dá o primeiro passo em direção de quem está chorando. Chorar é a última manifestação do desespero, da impossibilidade de acreditar ainda em algo que possa porventura acontecer. O Senhor sente o que significa o sofrimento para o homem que desacredita na possibilidade de uma saída, do homem que vê a sua vida completamente à mercê da derrota final. Assim, quando o que resta é somente o peso da desilusão, “o Senhor” não deixa que isto triunfe, Ele é o Senhor ! Jesus foi ao encontro da viúva e, tocando o esquife, deu um fim a toda aquela procissão, não permitindo assim que a tristeza pudesse transpor a porta do julgamento definitivo.
A procissão parou.
Antes que a nossa última resposta seja a derrota sempre existe a resposta de Jesus.
A narração do episódio é exposta intencionalmente como anteposição ao Salmo que mencionamos acima. O encontro com Jesus é uma resposta real àquelas perguntas que, sem Ele, tinham o vazio como perspectiva. «Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar? » perguntava retoricamente o Salmo; o Evangelista respondeu: «o que estava morto levantou» (o verbo anecomai indica “ficar ereto”, “estar em condição de se suster”); e ainda o Evangelista prossegue: «e começou a falar». Via no jovem o testemunho pessoal, o louvor feito de palavras carregadas de um sentido que somente pode entender quem já experimentou de algum modo o que significa se encontrar à beira do abismo da existência e, de repente, gratuitamente, encontrou Deus em seu trajeto. Ao seu louvor, toda a multidão do cortejo se associou como por um contagiante reconhecimento de que a última palavra não é, nunca, aquela que acreditamos que seja.

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